terça-feira, 29 de dezembro de 2009

É a Democracia Senhor Engenheiro!


Portugal tem desde finais de 1975 um regime político de democracia liberal, pelo qual lutou nas ruas e que consagrou constitucionalmente. E por isso mesmo, de tempos a tempos, o povo é chamado a escolher os seus representantes políticos no Parlamento da Nação. Dessa representação parlamentar decorre a formação de um Governo empossado perante o Presidente da República que interpreta o significado do acto eleitoral e a vontade popular assim livremente expressa.

Foi isso mesmo que aconteceu em Setembro passado depois de uma legislatura inteirinha de mais de quatro anos em que mandou a seu belo prazer a maioria politica de um só partido, o partido do Senhor Engenheiro Sócrates. Mas nesse pretérito Setembro o lídimo repositório da democracia, isto é, o povo, que somos todos nós que votámos como quisemos e de acordo com as nossas opções, não voltámos a dar a maioria absoluta ao Senhor Engenheiro socialista.

Divididos os votos nas eleições legislativas por vários partidos, formou-se apenas e agora uma maioria relativa dos socialistas uma vez mais encabeçados pelo Engenheiro Sócrates. E este quando foi constitucionalmente chamado pelo Presidente da República aceitou formar Governo para, como disse no seu discurso de posse, governar durante toda a legislatura.

Aconteceu assim o processo natural da democracia em Setembro em Portugal e os resultados eleitorais decorrentes exprimiram inequivocamente uma nova vontade do povo português. Dividiram-se mais os votos e passou a haver a possibilidade de se formarem várias maiorias parlamentares, sendo certo que aquela que era anteriormente representada apenas pelo partido Socialista desapareceu da nova configuração da Assembleia.

Sucede contudo que nestes meses já passados desde a tomada de posse do Governo se tem vindo a assistir a um prático desaparecimento da iniciativa governamental que traduz um compasso de espera táctico para criar problemas potenciais de ingovernabilidade ou a incapacidade de o partido do governo e o seu líder encontrarem efectivamente um rumo para a governação do país. E sabe-se por todos os indicadores económicos e sociais sucessivamente conhecidos que essa mesma governação não vai ser nada fácil.

Entretanto, o Governo e o partido que o apoia perderam algumas votações no Parlamento em torno de questões e diplomas que também faziam parte das promessas eleitorais dos vários partidos da oposição. E tem acontecido, face à falta de iniciativa política do Governo e do partido que o apoia, formarem-se maiorias ocasionais de todas as oposições para aprovarem medidas diferentes das opções do Governo ou reprovarem aquilo que eram as propostas do Governo e do seu apoio político parlamentar.

Ou seja, na casa suprema da democracia, fazendo uso das suas prerrogativas legítimas, os representantes do povo eleitos pelas diversas oposições aprovaram medidas políticas alternativas às que o Governo e o partido socialista defendiam. Por conseguinte, dois terços dos deputados do Parlamento legitimamente eleito votaram propostas diversas das do Governo e do Partido Socialista.

A democracia funcionou agora não para dar coro, como sempre aconteceu nos últimos quatro anos e meio, às propostas do partido socialista e do seu Governo, mas antes para afirmar propostas políticas diferentes dessas.

E que fez então o chefe do Governo e o partido do Engenheiro Sócrates? Apresentaram propostas políticas no Parlamento, o Engenheiro começou a governar finalmente, definiu as grandes orientações da linha política do Governo? Não, nada disso, o chefe do Governo começou imediatamente a clamar aos quatro ventos contra toda a oposição, a dizer que não conseguia governar com orçamentos (imagine-se) alternativos ao seu (que não apresentou ainda), a lutar por retirar legitimidade a uma expressão lídima da democracia livremente expressa no Parlamento. E diga-se aqui que a Assembleia da República constitucionalmente não é a chancela do Governo mas tão só o seu principal escrutinador e controlador.

Não se pode também esquecer que, no entretanto, o Governo do Senhor Engenheiro Sócrates viu aprovado no mesmo Parlamento o seu terceiro orçamento rectificativo de 2009 que elevou o défice público para mais de 8%, quando o mesmo Governo, com os mesmos Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças afiançavam há poucos meses que ele não estaria acima dos 6%.

Mas o Senhor Engenheiro tem feito nos interlúdios mais umas cenas para o filme da sua apregoada incapacidade de governar. Ataca (ou manda atacar) por intermédio de dirigentes da sua bancada parlamentar o próprio Presidente da República que lhe deu posse e legitimidade para governar.

E isto a troco de quê? Da criação de um clima tendente à sua pretensa vitimação, a qual lhe serve de óptimo pretexto para não discutir os reais e gravíssimos problemas do país e desviar as atenções para um foguetório político em torno dos importantíssimos casamentos homossexuais e, imagine-se agora, também da regionalização.

Ora, acontece que a democracia portuguesa é, tem de ser obviamente, bem mais exigente. Exige, desde logo, honradez, nobreza de carácter, responsabilidade, exemplaridade e dignidade institucional aos magistrados políticos, e escrupuloso respeito pela representação dos interesses dos eleitos. E em nome destes princípios exige também a humildade de todos aqueles que governam, e do Primeiro-Ministro por dever inalienável, para procurarem as melhores soluções para os problemas do país.

A democracia não pode ser um jogo teatralizado de manobras, esquemas e estratagemas que alimentem o ego enorme de alguém que se mostra incapaz de aceitar as condições em que o povo determinou que seja exercido o poder da governação. E que não saiba ou não queira negociar, cooperar, colaborar com as outras representações legítimas, para encontrar as melhores ou mais eficientes soluções para os gravíssimos problemas nacionais. Ainda para mais quando alguns desses graves problemas foram iludidos e escondidos durante muito tempo pelo Ministério que agora os devia, por encargo formalmente assumido, tentar solucionar ou minimizar.

Por isso mesmo é que o Presidente da República, na sua qualidade de superior magistrado da Nação e de garante do regular funcionamento das instituições, veio lembrar que já existiram outras experiências de governos minoritários em Portugal, que existem problemas muito preocupantes à espera de serem enfrentados por vários anos, e que, quando as oposições legitimamente reprovam iniciativas do governo anteriormente promulgadas e que agora são acolhidas naturalmente pela Presidência, o Governo tem não apenas a oportunidade de tomar medidas compensatórias como ainda mais o dever de negociar e consensualizar com as oposições e os parceiros sociais as novas soluções e propostas futuras a apresentar ao Parlamento.

A democracia é muito mais do que uma simples imposição permanente das vontades das maiorias políticas de cada época. Ela tem de ser um resultado de amplas negociações dos mais amplos interesses dos representados, exprimam-se eles através da maioria política que governa ou das minorias políticas da oposição que têm também as suas respectivas legitimidades intactas. É certo que em democracia deve governar o Governo, mas este não deve nem pode governar contra a vontade da maioria dos portugueses quando esta esteja em consonância e exprima legitima e afirmativamente essa vontade e os respectivos interesses.

Por isso, Senhor Engenheiro encontre lá o rumo e o sentido da governação do país e não continue nesse caminho de mistificação e teatralização de quem não sabe o que quer fazer ou não tem vontade de encontrar as convergências com as demais forças políticas em torno das difíceis soluções para os gravíssimos problemas de Portugal.

A democracia não é nem nunca foi um projecto de poder pessoal – porque a democracia é isso sim “o governo do povo, para o povo e pelo povo”. E Portugal não apenas merece como escolheu sucessivamente viver em democracia e com liberdade para escolher o seu caminho e os seus legítimos representantes.

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

2010: A Odisseia no Espaço Portugal!

O ano de 2009 está praticamente no fim. Foi mau, muito mau mesmo, tanto do ponto de vista económico como social ou mesmo político. Vem aí o novo ano de 2010, o qual inicia uma nova década deste século que sucede a uma anterior praticamente perdida e sem crescimento da riqueza nacional. Seria natural e salutar que se alimentassem novas esperanças, se formulassem outros desejos, se quisessem novas acções, projectos e resultados.

Mas o que vai transparecendo é o facto de que os portugueses já perceberam que, contrariamente a muita propaganda e foguetório que andaram no ar, a realidade económica e social que aí está não se compadece nem conjuga mais com as ilusões, as maquilhagens, as manipulações e as décimas estatísticas salvíficas.

Não, os portugueses agora em 2010 vão querer mesmo é que se lhes conte a verdade da situação crítica do país, e lhes digam como vai ser possível evitar a maciça quebra das condições de vida de muitos milhares de desempregados pelos diversos cantos e sectores do seu rectângulo, como vão ser recriados no futuro os empregos para todos esses compatriotas, fazendo aparecer novas empresas e mais apostas empresariais. E também que lhes demonstrem, com realismo e projectos no terreno económico, como vai ser possível que Portugal crie outra vez riqueza que torne efectivamente possível o aparecimento de muitas e muitas novas oportunidades de prover ao sustento das suas famílias.

Claro que os portugueses querem saber, melhor exigem saber, do Governo que está em funções e que ainda agora acabou de ser devidamente empossado, e do seu Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças em primeiro lugar, como pode ser possível diminuir o défice público dos mais de 8% para cerca de 3% em quatro anos, como vai ser possível estancar o aumento enorme da dívida pública que já vai em 80% do PIB e acorrer ao previsível aumento do pagamento dos juros anuais que já significam praticamente 3% do PIB ou 10% do valor anual das exportações, como vai ser solucionado o défice externo que supera 100% do PIB e que tem aumentado a uma cadência próxima dos 10% ao ano, como vão ser sustentados os défices enormes das empresas públicas que em várias delas já representam quase 15% do PIB, ou dos hospitais empresarializados que se situam em vários milhões de euros e das parcerias público-privado das Estradas de Portugal a pagar a partir de 2014 e que corresponderão a muitas dezenas de milhões de euros ao ano até 2030, ou ainda os custos anuais decorrentes das estradas SCUT que neste ano já suplantaram os 500 milhões de euros.

Tudo isto que é um colossal passivo para todos os portugueses serve apenas para exemplificar o conjunto enormíssimo de encargos já assumidos pelas gerações antecedentes e actuais e que vão ficar aí para que todos os que trabalham hoje e aqueles que virão a chegar ao mercado de trabalho nos próximos muitos anos encontrem meios de os solver. Estas gerações que ficarem a trabalhar e a empreender em Portugal terão durante décadas esta enormíssima “conta democrática” para pagar.

O Governo eleito recentemente e que se encontra plenamente em funções tem a estrita e democrática obrigação de começar imediatamente a dar respostas para todas aquelas questões aos portugueses, e estes têm o inalienável direito de exigirem conhecer como pensam os seus governantes solucionar esses gravíssimos problemas nacionais.
Não é aceitável e digno da ética de uma governação democrática que o país continue a assistir a um conjunto de manobras de diversão e intoxicação, alimentadas pelo partido do poder, que procuram desviar as atenções dos verdadeiros e difíceis problemas de Portugal em 2010. Ou seja, daqueles problemas e questões que podem colocar em causa o próprio futuro de Portugal se não forem eficaz e afincadamente enfrentados.

As agendas alternativas, politicamente correctas e/ou fracturantes, são nada mais do que fumo e areia para os olhos dos portugueses que não têm emprego, que não ganham aquilo que lhes permita criar os seus filhos e alimentar as suas famílias com dignidade suficiente, que têm muitas dúvidas sobre as suas condições de vida e de trabalho de amanhã, ou que caíram em situações de pobreza envergonhada a que nunca tinham estado habituados.

O Portugal de 2010 é uma verdadeira “Odisseia” para muitas centenas de milhares de portugueses desempregados que desconhecem as soluções para as suas vidas no futuro à frente dos seus olhos, e que conjuntamente com as suas respectivas famílias envolvem hoje milhões de cidadãos desta República.

O momento que Portugal vive é gravíssimo, pode ser de verdadeira e insuportável ruptura social, e exige aos governantes que se assumam como verdadeiros estadistas. Isto é, que pensem nos interesses verdadeiros do país e dos seus compatriotas, que sobreponham as soluções de médio prazo aos apetites ilegítimos e inaceitáveis da sua sobrevivência no poder, que sejam homens e mulheres capazes de apresentarem a verdade gravosa da situação que se vive e que tenham a coragem de propor os caminhos e as soluções que encaminhem o país e os portugueses para uma nova esperança. Isso sim deve ser o património de legitimação de um Primeiro-Ministro e de um Ministro das Finanças, desde logo, e em primeiro lugar – que só assim podem considerar-se a si-próprios como verdadeiros “Homens de Estado”.

Agora em 2010, perante os dados insustentáveis da economia e das finanças de Portugal, já não existem soluções doces, fáceis, ilusórias e paralelas aos dilemas e que não envolvam sacrifícios e mudança dos rumos antecedentes dos últimos mais de dez anos. Mas para as propor e pôr em prática é condição indispensável que os governantes que as corporizem perante os cidadãos tenham a dignidade e a respeitabilidade intactas. Isto é, que ninguém possa duvidar de que aquilo que agora veem defender como soluções para o país será rigorosa e estritamente praticado e que os exemplos dessas práticas começarão por vir dos níveis políticos cimeiros que propõem essas mesmas soluções.

É chegado agora o momento em que os líderes governamentais e políticos devem ser exemplares e serem os primeiros a praticarem aquilo que defendem como soluções para o futuro de Portugal. E para a consecução da necessária austeridade nacional, que deve começar no próprio Estado, os governantes devem ser os primeiros a darem exemplos de a praticarem eles mesmos e a fazerem praticar por todos quantos deles mais proximamente dependem – e desde logo nas despesas e nos rendimentos dos departamentos estaduais.

A “Odisseia de Portugal”, que deve começar em 2010, terá muitos mais anos pela frente, se for para parar a decadência e o empobrecimento que a primeira década deste século confirmou. E o próximo “Orçamento de Estado para 2010”, a apresentar no Parlamento no início do ano, é o instrumento por excelência para se confirmarem estas perspectivas e novos rumos da política portuguesa. E aí o Governo estará no primeiro dos planos para o bem ou para o mal – para o bem, se der mostras inequívocas de que quer orientar Portugal para as verdadeiras soluções dos seus dilemas críticos actuais, para o mal, se alimentar uma vez mais falsas realidades e expectativas impagáveis.

Em 2010 o país estará confrontado como uma “Odisseia no Espaço Portugal” que vai marcar o futuro económico, financeiro, social e político, bem como as condições de vida dos portugueses que trabalham e daqueles que virão a ser as próximas gerações de trabalhadores e empreendedores. E não restam dúvidas que a sustentabilidade e a dignidade de vida de todos esses portugueses depende de uma nova visão e estratégia nacional para a nova década deste século XXI, corporizada pelos governantes e as elites políticas nacionais.

José Pinto Correia, Economista

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Da Liderança e do “Não-Governo” de Portugal


“O melhor líder é aquele de cuja existência o povo mal se apercebe; menos bom é aquele que é obedecido e aclamado pelo povo, o pior é aquele que o povo despreza”, Lao Tzu, 630 a. C.

Nos últimos tempos temos assistido a fenómenos muito estranhos no que respeita à governação de Portugal. Ainda mal se iniciou a nova legislatura e já existem ameaças veladas de que o Governo não é capaz de governar, por as oposições parlamentares terem aprovado algumas iniciativas legislativas que contrariam as opções do Governo. Lembremos, todavia, que estas mesmas escolhas governativas tinham sido realizadas num ambiente parlamentar que desapareceu e que permitia à maioria política antecedente praticamente governar sempre ao arrepio das restantes forças e representações políticas.

É indiscutível que governar em situação difícil como é a actual de Portugal implica a capacidade de visão do futuro, de diagnosticar acertadamente as dificuldades e incapacidades económicas, sociais, culturais e morais do país. Um Governo tem de se apresentar perante os portugueses com uma verdadeira e inequívoca estratégia de saída da crise e de criação de um futuro nacional melhor, mais rico e mais justo. É, pois, difícil de aceitar estas afirmações de incapacidade de governar que vêem do próprio Primeiro-Ministro recentemente empossado e de vários dos políticos de primeiro-plano que pertencem aos quadros políticos do partido que sustenta o Governo em funções plenas.

Impõe-se, por isso, que aqui e agora façamos uma reflexão sobre as lideranças políticas governamentais, a sua natureza e capacidades essenciais, e, bem assim, os modos como essas lideranças políticas devem incorporar os desejos e vontades dos governados e desenhar as consequentes estratégias de desenvolvimento, ou no caso actual, definirem as linhas orientadoras da saída da crise gravíssima de empobrecimento e potencial decadência progressiva em que Portugal se encontra no final de 2009.

Os portugueses poderiam pensar que quando votam e escolhem os seus representantes na Assembleia da República que, depois, por decorrência da maioria dos deputados, dão origem à investidura de um Governo, tal escolha e instituição, juramentada pelo Primeiro-Ministro escolhido de entre os militantes do partido mais votado, daria natural e devidamente origem a um Governo. E pensariam também que este órgão de soberania, detentor do poder executivo, procuraria dar um caminho e orientação para o País, sendo que, num contexto de crise gravíssima como a actual, essa condução é absolutamente vital para assegurar a própria salvaguarda da coesão e acalmia social.

O Governo investido apresentou em tempo perante a Assembleia da República o seu Programa e pensar-se-ia que iria começar a preparar a implementação de um conjunto de opções políticas e económicas naturalmente decorrentes do diagnóstico detalhado da situação da crise nacional que precedentemente tinha realizado o partido que lhe dá apoio político e institucional.

Assim, seria natural e exigível que o Governo pudesse apresentar à sociedade portuguesa rapidamente as grandes linhas de orientação e o caminho e estratégia que pretenderia seguir para enfrentar os graves problemas nacionais e conduzir o país no espaço da legislatura para uma melhor situação económica, social e moral.

Só que, como acontece em todas as demais instituições da vida económica e nacional, o Governo carece de uma liderança efectiva e visionária que seja capaz de afirmar o conjunto de ideias e opções estratégicas de condução do país e se demonstre como inequivocamente determinada e empenhada no encontrar das soluções que mais eficazmente possam garantir a renovação económica, social e moral da República portuguesa.

Esse importantíssimo papel de orientação e vislumbre do futuro novo e desejável é o papel nobre dos líderes, que nobilita quem o exerce perante os que o seguem, neste caso dos principais líderes políticos do Governo. E o principal intérprete dessa liderança transformacional e visionária só pode ser no caso do Governo o próprio Primeiro-Ministro em funções.

As lideranças, designadamente as de teor político, sabe-se bem, assumem muito maior relevância e determinação nos momentos e situações de crise grave – que é indiscutivelmente a que vive hoje a muitos títulos e com muitas repercussões a situação actual da República portuguesa.

Uma verdadeira liderança, que possa ser seguida pelos principais intérpretes e agentes económicos, sociais, culturais e morais, e indispensavelmente constituir a referência das acções e comportamentos da maioria dos cidadãos, precisa de ter uma visão orientadora ambiciosa mas lúcida que lhe permita fazer as escolhas e determinar os objectivos e orientações das políticas. E a liderança eficaz precisa de legitimidade para poder ter a capacidade de persuadir e conquistar os cidadãos para esse novo e melhor caminho do futuro, do qual não podem restar dúvidas que será melhor do que aquele que constituirá a perpetuação do presente e das perspectivas negativas que deste decorrem.

Não há líder, nem liderança efectiva, sem que exista confiança e “confiabilidade” nas propostas, nas acções e no carácter dos líderes. Os líderes têm de ter ideias e valores influentes, mas que sejam eficazmente mobilizadoras da acção dos protagonistas sociais e económicos, dos cidadãos de um modo geral.

Por isso mesmo, as estratégias e tácticas de manipulação perceptíveis são contraproducentes, porque desvanecem a confiança nas capacidades e competência dos líderes que as praticam e degradam o carácter de quem as teima em praticar. E, nestes casos, a retórica das boas intenções é facilmente entendida como despicienda, tornando-se em mais um obstáculo para consequente percepção de confiança nos líderes e na sua indispensável liderança política.

Os líderes que querem ter efectivamente a possibilidade de afirmar a sua capacidade de condução estratégica da sociedade e da vida política, de serem respeitados e seguidos pelos cidadãos para quem governam, devem basear a sua acção e escolhas em princípios e valores indiscutíveis. Princípios básicos como a lealdade, a equidade, a justiça, a integridade, a honestidade e a confiança, são os ingredientes essenciais de uma boa liderança. A liderança que se afirma em função de princípios e valores básicos permite aos líderes serem directos, honestos e frontais, por um lado, e evitarem com sucesso evidente os truques da duplicidade e da desonestidade, isto para evidente contragosto de muitos que pretendem e anseiam pela manipulação e a dissimulação ou a propaganda disfarçada de retórica ínvia ou vazia.

Os líderes que respeitam estes princípios são merecedores de confiança intuitiva pelas pessoas, que passam a aceitar uma personalidade e um carácter que lhes dá o exemplo, o bom exemplo, e lhes permite aceitar sem dúvidas a personalidade do líder e as suas escolhas e opções. E permitir-lhes-à estabelecer com esse líder relações de prazo longo, derivadas dessa “confiabilidade” que se mantém ao longo do tempo.

Um líder que representa valores que os outros aceitam e desejam seguir tem sempre um exercício mais fácil de liderança; a dúvida e a dificuldade de aceitação das orientações e acções dos líderes são nestes casos muito menos evidentes, porque as pessoas reconhecem as guias condutoras e a sua ancoragem em bens superiores que se expressam nos valores que os líderes afirmam e comunicam partilhar.

As qualidades do líder ou dos líderes eficazes de hoje, para aqueles a quem se dirigem no sentido de influenciarem ou conduzirem num determinado sentido e direcção, são menos as de um “Grande Chefe”, inundado de um poder profético ou heróico, e sobretudo as de alguém que é capaz de “compreender a diversidade de motivos dos seus concidadãos, as diferenças de intensidade com que eram defendidas as posições contrárias, e a direcção da mudança de cada uma delas, de momento a momento” (como escreveu Garry Wills a respeito das capacidades indiscutíveis de Lincoln).

Os líderes grandes e exemplares de agora são sempre o produto de grandes causas que eles mesmos em muitos casos capazes definem e incorporam, e por isso os líderes desempenham as funções em benefício de uma comunidade criando sentido e objectivos, reforçam a identidade e a coesão nacional e estabelecem a ordem necessária à mobilização do trabalho colectivo aos mais diversos níveis e actores sociais, económicos e culturais.

Claro está que os líderes detêm poder e influência e exercem autoridade, pois que a liderança é em si-mesma sempre uma relação de poder. Mas os líderes democráticos são cada vez menos aqueles que se afirmam pela coacção e o medo e mais pelo denominado poder brando (o denominado “soft power”). Este tipo de poder implica a persuasão, a admiração das qualidades de comunicação, o predomínio do espírito de negociação, o entrosamento com as necessidades e anseios dos liderados, como principais componentes da afirmação do poder dos líderes. O poder para estes líderes democráticos é, então, como afirmou Richard Neustadt, “sobretudo a capacidade de persuadirmos os outros de que é do seu próprio interesses fazerem aquilo que queremos que eles façam”.

Acresce que o contexto em que se exerce o processo de liderança é decisivo para a emergência e sucesso dos líderes actuais. O contexto do exercício do processo de liderança, que é agora sempre caracterizado por fenómenos e factores grandemente voláteis e indefinidos ou complexos, pode determinar as condições efectivas de sucesso dos líderes existentes ou contribuir para a emergência de outros mais ajustados e capazes de lidarem com esses grandes constrangimentos situacionais. Por isso, as situações de crise, e especialmente as de crises gravíssimas, determinam líderes especiais que ainda que sejam “indivíduos que não controlem as ondas, possam cavalgá-las; que não controlando os acontecimentos ou as estruturas, possam prevê-los e, em certa medida, subordiná-los aos seus propósitos” (John Kingdom, citado em Joseph Nye, Jr., pág. 26).

Nas situações de crise grave não bastará aos líderes a apresentação de propostas que continuem a concretizar o que aconteceu no passado que se demonstrou medíocre. São necessários, por isso, novos modelos e orientações que permitam fazer o necessário e o diferente para o futuro que se avizinha como perturbante.

Estes novos líderes têm de ser transformacionais, não se podem limitar a lidar com o contexto em que actuam, têm de ser capazes de transformar as limitações e fragilidades em rupturas que conduzam a melhores soluções no futuro para os principais temas e problemas que definem a situação de partida. Têm, por conseguinte, de agir não apenas sobre os acontecimentos mas de fazerem os próprios acontecimentos. “A importância dos líderes é ligeiramente maior ou menor, dependendo do modo como eles diagnosticam as situações de crise, das respostas que prescrevem para as resolver e da capacidade de mobilizarem o apoio das suas comunidades políticas”.

Os líderes autênticos são verdadeiramente humildes. Isto é, são capazes de voltar atrás e verem as coisas, examinarem os problemas de outra forma, perspectivarem novas soluções e fazerem outras escolhas – negociando politicamente e em permanência como os actores relevantes do sistema.

E hoje, perante a crise gravíssima de Portugal, a liderança política que comanda o Governo do país tem de ser capaz de visionar o futuro desejável, de antecipar as dificuldades da rota de correcção das incapacidades, fragilidades e insuficiências, de desenhar exercícios de prospectiva e de concepção de estratégia de desenvolvimento, que permitam uma nova esperança para Portugal neste primeiro quartel do século XXI. Será necessário prever e projectar as mudanças das estruturas e sistemas que condicionam o desenvolvimento e o crescimento económico e ir reformando profundamente as componentes da moralidade da República.

A humildade destes líderes revela a sua autenticidade e a nobreza do seu carácter e da sua inteligência – as quais exprimem a grandeza ética dos líderes. Como bem refere Stephen Covey “ A pessoa ética olha para cada transacção económica como um teste à sua administração moral. É por isso que a humildade é a mãe de todas as virtudes – porque ela promove a administração”.

A boa moral, a grandeza de valores e de actos dos líderes, é, por isso mesmo, uma condição insubstituível para a correcta e justa condução dos negócios públicos e do Governo de Portugal. Nunca devemos aceitar que o Governo da nossa 3ª Republica possa estar subjugado às máximas de Maquiavel de que “Deveríamos ser temidos amados, mas dada a dificuldade em conciliar ambas as coisas, é muito mais seguro ser temido do que amado […]. Todavia, ainda que não conquiste amizade, um líder deve fazer-se temer de tal modo que evite ser odiado”.

Um líder político de um Governo, um Primeiro-Ministro, não pode nem deve querer ser temido pelo medo que inspira, porque o contrário do medo nunca é o amor mas sim o ódio (como bem o percebeu o próprio Maquiavel naquela indicação que deu ao seu Príncipe da época). E nunca poderá o Primeiro-Ministro de Portugal entender que manobrando pelo temor e medo que instila nos governados e nos restantes actores políticos está a governar para o bem do povo – isso é uma contradição insanável que terminará mais cedo ou tarde por uma “revolta popular”, nem que seja apenas expressa nas urnas eleitorais como acontece sempre em regimes de democracia liberal como é o de Portugal desde 1974.

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Democracia, “Bom Governo” e Prestação de Contas em Portugal

Dizemos em Portugal desde há muitos e habitualmente que vivemos em democracia – e isso mesmo consta da nossa constituição desta 3ª República, não apenas no domínio político, mas também no económico e social.

Também há quem diga, desde há muito tempo e com cada vez mais insistência ultimamente, que a nossa vivência democrática tem muitas limitações e que não teremos atingido já, inequivocamente, a circunstância e os hábitos comunitários próprios de uma democracia adulta.

Quando em Portugal se elege uma maioria que forma o Governo, esta tem tido quase sempre tendência, quando é maioria absoluta no parlamento, a constituir um poder praticamente absoluto – acabámos de viver recentemente o significado extremo e inequívoco dessa realidade. Este tipo de poder tendencialmente asfixiante apoia-se sempre e apenas nos seus deputados, nas suas propostas, nas suas ideias e valores e na ideologia quando a tem e exprime, senão sempre pelo menos em determinadas alturas.

O Governo da maioria política passa rapidamente a entender que deve dominar o Estado, encher os gabinetes ministeriais de assessores próximos do partido do poder, nomear os seus apaniguados e simpatizantes para os inúmeros lugares de topo da administração central, dos institutos públicos e das empresas públicas. Ou seja, o Estado é governamentalizado e transformado numa máquina de poder ao serviço do partido que constitui a maioria dos sufrágios.

Este “estado de coisas” passa a ser, por conseguinte, um desvio enorme do sentido do que é o Estado, do que ele deve ser e a quem deve servir. Há como que uma usurpação do sentido essencial do Estado que seria sempre suposto dever servir e representar todos os cidadãos.

O Estado, como se deveria entender a bem do “Bom Governo” e de uma Democracia exigente e de valores elevados, não deve estar ao serviço de apenas uma parte e uma parcela da vontade popular, ainda que seja maioritária. Porque assim não se acautela a indispensável independência do Estado da voracidade partidocrática e não se pode vir dizer, como o fazem sistematicamente aqueles que se apoderam e usurpam o sentido do Estado, de que se está a servir (sempre) o denominado “interesse geral”.

Não, assim tomado por dentro pelos meros interesses partidários da maioria política do dia, o Estado serve apenas as vontades e projectos dos que governam e que tomaram as suas instituídas rédeas de poder. Por isso se diz, nestas condições, com grande propriedade, que o Governo que está no uso do poder se limita a representar-se a si-mesmo e que usa o poder de Estado para se tentar perpetuar.

A democracia fica, então e por consequência, obviamente limitada no seu verdadeiro alcance e nas possibilidades de apresentação e validação de alternativas políticas que são normalmente condenadas a derrotas sucessivas nas instâncias respectivas. Uma parte muito importante do povo, dos seus legítimos interesses e vontade que é expressa pelas oposições, fica arredada de validar as suas alternativas e opções de “gestão da coisa pública” e do Estado. Nestas condições, o Governo passa a ser um instrumento de afirmação do poder quase absoluto de uma maioria política, retira expressão às restantes vontades expressas na vida nacional, e reduz a democracia a uma mera e limitada concretização das propostas e ideias políticas da maioria governamental.

O Governo governa apenas para uma parte do povo e da Nação e tende a reduzir a sua ética a uma permanente luta pela supremacia dos valores da maioria política. No extremo da governação, por esta via limitativa da diversidade política, o Governo vai a prazo perdendo possibilidades de negociação com outras forças políticas e sociais, as quais lhe vão deixando de aceitar a legitimidade, a confiança, a dignidade de exercício do poder, reduzindo-lhe a respectiva ética governativa. O poder que assim se exerce de forma praticamente absoluta perde a sua legitimidade democrática e vai progressivamente exaurindo a sua ética própria perante o povo para quem diz governar.

Os interesses públicos, ou o também muitas vezes denominado “interesse geral”, passam então a ser vistos como os meros interesses de quem governa, e a maioria é cada vez mais entendida como governando para si-mesma. Ao mesmo tempo que o Governo se confunde cada vez mais com o partido que detém a maioria política.

A confusão entre Estado, Governo, maioria política e partido do poder, torna-se inequívoca e desfaz a verdadeira noção de que a democracia é o “governo do povo, para o povo e pelo povo”. Quem governa fá-lo nestas condições em benefício dos seus próprios interesses e valores e não dos da Nação e do povo. Partido e poder confundem-se com cada vez maior intensidade e assistem-se a múltiplas confirmações desta natureza do poder através de inúmeras nomeações de membros e simpatizantes do partido do poder para cargos públicos, empresariais ou quasi-públicos.

É certo e sabido da teoria política que o Governo, os governantes, exercem o poder político com a intenção de renovarem a sua maioria em cada próximo acto eleitoral. A racionalidade que impera no exercício do poder é a da tentativa de reeleição, e a perspectiva com que se governa é quase sempre, por natureza dos mandatos, a de curto-prazo, a qual desvaloriza por consequência as grandes medidas e referências estratégicas. Praticamente não se vê que o Governo se preocupe e debata com a sociedade os grandes problemas e a estratégia de longo-prazo do país. Nem tal lhe interessa, sobretudo quando esse tipo de questões traz associadas enormes indeterminações sobre o devir do todo nacional.

O Governo confirma, nos seus mandatos e nos níveis de preocupações que apresenta perante a sociedade, bem como nas propostas que defende para as solucionar, que quer iludir o mais possível as ameaças do futuro a prazo e quer, isso sim, garantir que quando o novo acto eleitoral chegar se consegue apresentar perante o povo nas melhores condições possíveis para garantir novo mandato. Para o que forjará, na altura eleitoral, um novo “Programa” que procure esquecer novamente as questões extremas que assolarão o futuro do país.

O Governo que assim governou e pretende continuar a governar, sabe que quando essas questões difíceis chegarem e se tornarem praticamente iniludíveis e inultrapassáveis já os governantes de ontem e os de hoje estarão certamente longe do Governo do país.

Os Governos farão, por conseguinte, o que o curto-prazo indicar e aquilo que lhes trouxer popularidade fácil e correspondentemente os votos, e dispensarão sempre a prospectiva e a estratégia nacional, bem como a tentativa de diagnosticar os principais problemas do futuro nacional e de apresentar as respectivas soluções num determinado horizonte temporal relativamente alargado. Porque a absoluta vontade e necessidade de serem reeleitos e deterem novamente o tal grandioso e absoluto poder do Estado os torna indefectíveis do curto-prazo e da correspondente criação dos cenários de ilusão em cada novo acto eleitoral.

Entretanto, no poder, com o Estado tomado de assalto, os partidos maioritários e os governantes vão tomando decisões, despendendo os escassos recursos financeiros dos contribuintes, fazendo obras e projectos que dizem vão resolver os tais problemas menores que identificaram e incluíram nos respectivos programas eleitorais. Só que em muitos desses novos projectos e obras, muitas e muitas vezes dificilmente justificáveis, cometem-se atropelos mesmo às regras definidas pelo Governo em funções.

É fácil, então, encontrar obras que avançam sem que estejam garantidas todas as medidas legais, que acabem a custar muito mais do que eram os seus respectivos orçamentos, que se atribuam em função de condições iniciais que depois são abandonadas na adjudicação, e muitas outras obras e projectos que sejam atribuídas sem correspondentes concursos públicos. Ou seja, os governantes e seus dependentes em vários institutos públicos prevaricam ou mandam prevaricar contra os interesses públicos, e o tal “interesse geral” que prestimosamente afiançam sempre defenderem, tudo isto sem que se sintam obrigados a virem, perante a Nação e povo que representam, e em nome do qual actuam, dar a devida e transparente prestação de contas.

Prestação de contas que deve ser feita em nome da democracia, em primeiro lugar, de uma democracia efectiva e não meramente semântica e defraudada, e, em segundo lugar, e indispensavelmente, em razão da assunção das reais e efectivas responsabilidades dos diferentes agentes que assim prevaricam sistematicamente contra a sociedade e o erário dos contribuintes nacionais. A prestação de contas exige transparência permanente e atribuição das responsabilidades; a transparência permite à sociedade avaliar da economia, eficiência e eficácia dos gastos dos recursos públicos, e a responsabilização permite que os agentes não sejam indiferentes ao modo como usam os bens de toda a comunidade nacional.

O Governo de Portugal não é, não pode ser, o príncipe absoluto que tudo pode e tudo quer. O Governo está mandatado pelo povo e actua em seu nome, pelo que é obrigado a defender, com a mais estrita transparência e rigoroso cumprimento da lei da República, os negócios públicos em que actua como intermediário do povo que sempre será. E deve prestar ao povo contas detalhadas dos contratos e dos gastos públicos que faz ou aceita vir a fazer, porque o erário público é pertença do povo e nunca do Governo.

O Governo de Portugal, para que tenhamos uma melhor democracia e maiores níveis de exigência ética na política nacional, não é nem dono do Estado nem muito menos da Nação. O Governo deve responder sempre perante o país, quer através das iniciativas que as oposições políticas intentem nos locais próprios, quer perante os tribunais financeiros e outros, quer por sua própria iniciativa, o que seria sinal de maior dignidade e honradez política, pelas acções e actividades próprias de todos os ministérios e departamentos governamentais ou institutos públicos quasi-públicos. Tudo deve ser feito na República para que os governantes e agentes públicos de relevo esclareçam os portugueses dos seus actos, projectos e obras respectivas.

Uma Democracia eficaz e adulta, um “Bom Governo” e uma “Prestação de Contas” séria e rigorosa, exigem maiores padrões de ética política para Portugal – tanto agora como, por ainda maior razão, nos anos futuros!

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Notícias de Portugal: A “Podridão Reaccionária Em Curso (PREC de 2009)”

Portugal está no caminho da desgraça, não apenas financeira e económica, mas sobretudo moral e do próprio regime. Não será apenas o cada vez mais patente regresso a uma vil e apagada tristeza, com a proliferação da miséria nauseabunda numa Europa em queda de poder e significado no Mundo global competitivo, mas sobretudo a impostura de uma “mentirocracia” que se vai esgotar numa qualquer esquina próxima da nossa história colectiva. Há, por conseguinte, por lassidão e desmoralização crescentes um verdadeiro processo de “Podridão Reaccionária Em Curso (o PREC de 2009)” que pode vir a terminar em verdadeiras convulsões sociais de que ninguém pode antecipadamente prever como começam e terminam.

E não é certo, bem pelo contrário, que a revolta (porque a indignação já não se basta) não possa vir a estar de novo na rua se as elites prostituídas pela perfídia da bebedeira do poder não tomarem uma caminhada de dignidade, honradez, rigor patriótico, e se relegitimarem aos olhos do povo que devem liderar.

Vamos ver como alguns dos nossos melhores de sempre (Pessoa, António Vieira e Eça) viram Portugal e os portugueses que os lideravam e podem permitir-nos ver a nossa tristonha e vil realidade de uma República que deixou de ter ética própria de legitimidade inquestionável e que relativiza dia após dias os valores do Bem e do Mal, do Bom e do Mau Governo (foi esse, lembre-se agora vivamente, o fio condutor para a longa ditadura salazarista, não o esqueçamos agora, porque a farsa, primeira, pode repetir-se em tragédia, como segunda).

1. “O Fracasso”, para Fernando Pessoa (em Páginas do Pensamento Político 1910-1919, edição Europa-América, Organização de António Quadros, 1986)

“Bandidos da pior espécie (muitas vezes, pessoalmente, bons rapazes e bons amigos – porque estas contradições, que aliás o não são, existem na vida), gatunos com o seu quadro de ideal verdadeiro, anarquistas-natos com grandes patriotismos íntimos – de tudo isto vimos na açorda falsa que se seguiu à implantação do regime a que, por contraste com a monarquia que o precedera, se decidiu chamar República.
A monarquia havia abusado das ditaduras; os republicanos passaram a legislar em ditadura, fazendo da ditadura as suas leis mais importantes, e nunca as submetendo a cortes constituintes, ou a qualquer espécie de cortes. A lei do divórcio, as leis de família, a lei da separação da Igreja do Estado – todas foram decretos ditatoriais, todas permanecem hoje, e ainda, decretos ditatoriais.
A monarquia havia desperdiçado, estúpida e imoralmente, os dinheiros públicos. O país, disse Dias Ferreira, era governado por quadrilhas de ladrões. E a república que veio multiplicou por qualquer coisa – concedamos generosamente que foi só por dois (e basta) – os escândalos financeiros da monarquia. (…)
(…) É alguém capaz de indicar um benefício, por leve que seja, que nos tenha advindo da proclamação da república? Não melhorámos em administração geral, não temos mais paz, não temos sequer mais liberdade. Na monarquia era possível insultar por escrito impresso o Rei; na república não era possível, porque era perigoso, insultar até verbalmente o Sr. Afonso Costa. (…)
(…) Este regime é uma conspurcação espiritual. A monarquia, ainda que má, tem ao menos de seu o ser decorativa. Será pouco socialmente, será nada, nacionalmente. Mas é alguma coisa em comparação com o nada absoluto que a república veio [a] ser” (fim de citação).

2. “A falta de sal na Terra”, para o Padre António Vieira (em Sermão de Santo António aos Peixes, pregado na cidade de S. Luís do Maranhão em 1654, edição Clássicos da Língua Portuguesa, Sermões, 1979)

“Vós, diz Cristo, senhor nosso, falando com os pregadores, sois a sal da terra; e chama-lhe sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que têm ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga e os pregadores dizem uma ciosa e fazem outra, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem que fazer o que dizem; ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo, ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. Não é isto tudo verdade? Ainda mal.
Suposto pois que ou o sal não salgue ou a terra se não deixe salgar, que se há-de fazer a este sal e que se há-de fazer a esta terra?” (fim de citação).

3. “Teodoro* entre o Céu e o Inferno”, para Eça de Queiroz (em o Mandarim, Obras Completas de Eça de Queiroz, III Volume, Círculo de Leitores, 1980)

“Veio-me à ideia de repente que tinha diante de mim o Diabo: mas logo todo o meu raciocínio se insurgiu resoluto contra esta imaginação. Eu nunca acreditei no Diabo – como nunca acreditei em Deus. Jamais o disse alto ou o escrevi nas gazetas para não descontentar os Poderes Públicos. Mas que existam estes dois personagens, velhos como a Substância, rivais bonacheirões, fazendo-se mutuamente pirraças amáveis –, um de barbas nevadas e túnica azul, na toilette do antigo Jove, habitando os altos luminosos, entre uma corte mais complicada que a de Luís XIV; e o outro enfarruscado e manhoso, ornado de cornos, vivendo nas chamas inferiores, numa imitação burguesa do pitoresco Plutão – não acredito não, não acredito! Céu e Inferno são concepções sociais para uso da plebe – e eu pertenço à classe média. Rezo, é verdade, a Nossa Senhora das Dores: porque assim como pedi a compadrice do Sr. Doutor para passar no meu acto, assim como, para obter os meus vinte mil réis, implorei a benevolência do Sr. Deputado, igualmente, para que me não assalte o tifo e não me fulmine a apoplexia, necessito ter uma protecção extra-humana. Ou pelo rapé ou pelo incensador, o homem prudente deve ir fazendo assim uma série de sábias adulações desde a Arcada até ao Paraíso” (fim de citação).

(*) Teodoro é o personagem principal desta obra do nosso grande Eça de Queiroz, trabalhava em Lisboa onde era amanuense do Ministério do Reino e vai correr mundo até Jerusalém abonado pela sua rica tia, uma fervorosa católica apostólica romana que queria converter o seu perdido sobrinho e desviá-lo dos caminhos ínvios da capital.


Há praticamente um ano escrevi aqui neste mesmo espaço do Jornal um texto a que dei o título de “Um ar funesto na cidade”. Embora de um modo convenientemente metafórico e eminentemente simbólico esse escrito torna-se agora de novo muito oportuno e respigo para hoje as frases que se seguem, que com muita humildade parecem renovar as palavras de Pessoa, Vieira e Eça que acima ficaram.

4. “Um ar funesto na cidade”

“Há um ar funesto a descer sobre a cidade. Sente-se já o cheiro de uma certa podridão a invadir as nossas narinas. O Sol parece que vai desaparecer e abandonar-nos na volta dos dias que estão para vir. O bulício das crianças já se desvanece numa quietude que nos inquieta e abre fragas nos sentidos.
Os rostos que passam deixam transparecer um olhar baço e uma tez arreganhada. Sentem-se as preocupações e palpita-se a desconfiança. Vem-se a nós a desesperança e o abandono das conquistas no futuro. Este lê-se prenhe de desvarios e de escuridão. A luz apaga-se a cada instante que nos perpassa. Não se vê um amanhã novo, um horizonte radioso. Dá-se-nos a vontade de fechar as janelas e soltar um grito – lancinante de dor e de raiva.
As ruas estão inundadas de ignomínia, de luxúria, de sofreguidão insana pelo vil metal, de despreocupação com os infortúnios e a miséria. A injustiça é flagrante e adensa-se a corrupção das mentes e dos corpos. Tresandam-se as rosas e os canteiros, neles fenecem as sementes da boa fortuna. No rio há um imenso lodaçal, nem os peixes se podem salvar já, de tanta podridão. Consomem-se as almas, soam as desventuras, invade-se a inteligência com medos, campeia já a lassidão e a indiferença doentia. Socialmente rareiam os princípios, a dignidade e a respeitabilidade. Soam atrozes as ilusões e as mentiras, ribombam as trombetas da propaganda. Na cena, no espaço central da “polis”, vagueiam as mesmas sombras – da arrogância, da altivez, do desvario, do insuportável manobrismo.
“Chega, basta, que a canga está demais” – grita um alguém de lá de baixo, cheio da sua miséria longamente sofrida em silêncio!” (fim de citação).

A 3ª República perdeu continuadamente a sua moralidade e o estatuto das elites políticas e outras é medíocre e desacredita-as aos olhos dos comuns cidadãos; o próprio regime passa a estar progressivamente em questão pela degradação a que se vem assistindo (Pessoa tem outra vez razão). Não há sal que evite a corrupção, nem os pregadores pregam as doutrinas sãs, preferem pregar-se a si-mesmos e aos seus súbditos servis e benevolentes; campeia a verdade dos factos sujos das acções e das vontades dos poderosos (Vieira tem agora novamente sentido: não há sal para esta Terra!). Os Teodoros estão aí em todo o lado, nos postos mais altos da República, onde beneficiam da compadrice e do espírito de seita que substitui a competência e o rigor pelo “amiguismo” e o seguidismo político-partidário (Eça definiu os personagens que pululam nos meandros e corredores do poder; e aos outros, os “filhos de deuses menores”, só lhes resta pedirem a intercessão dos Deuses e dos Anjos para sobreviverem).

Portugal vai-se, assim, esvaindo e apoucando, num processo de apodrecimento e desvario moral que não pode acabar em Bem!

José Pinto Correia, Economista