quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Silêncio que se vai governar!

É agora, já foi anunciado pelos anjos da governação, que o país vai finalmente ser governado. Até aqui o que aconteceu foi outra coisa qualquer, um intervalo para aquecimento, bem entendido. Agora vai ser a sério e à séria.

Vai vir aí já de seguida uma catadupa de originalidades e engenharias orçamentais e financeiras para nos colocar de novo no trilho da modernidade. E para começar vamos ter, por isso mesmo, um Programa, um “Programão de Estabilidade e Crescimento”.

Aí ficará tudo resolvido desde logo, nuns quantos quadros com números de despesas e receitas, com uma convenientes projecções de variáveis, e destas resultarão os respectivos défices obrigatórios.

Em 2013 teremos de certezinha absoluta os milagrosos 3 por cento de défice orçamental, qualquer coisa como menos 10.000 milhões de euros de reengenharia entre despesas e receitas relativamente ao executado em 2009, de má memória. E aí o Estado já não dependerá em dois meses de cada ano nas suas despesas dos dinheiros que vindos dos mercados externos financiaram o défice de 2009.

Tudo será magnífico em 2013, assim será atestado no tal “Programão”, os três por cento de défice aí já só corresponderão aos dinheiros necessários para os investimentos públicos como manda a boa regra de gestão das finanças públicas. As despesas correntes do Estado já serão então inteiramente financiadas por dinheiros cá da Pátria – seremos patriotas de novo, inquestionavelmente pois então.

Claro está que os quadros constantes desse “Programão” e os números previstos para as receitas e o crescimento económico, e até talvez a redução das despesas, convergirão para que se encontrem magistralmente os tais 10.000 milhões que fazem falta cá nas contas da Pátria. Talvez até se componham vários cenários alternativos e que todos se encaminhem no final para o mesmo e desejadíssimo resultado – o mágico número de três por cento (ou um pouco menos) de défice orçamental.

Será assim um novo e moderno empreendimento, fruto da vontade férrea, da determinação invulgar, da visão e ambição da liderança política governante, uma empresa ímpar e absolutamente digna do melhor de Portugal.

Nem pensem os catastrofistas, esses áugures da incredulidade e da desgraça permanente, que o país vai atrás, por conseguinte, das piores das causas, das premonições da desgraça e da decadência eminente e empobrecida.

Não, vão de retro esses títeres da maledicência, agora é um tempo de grandes feitos e vão ser escolhidos os bons caminhos e tudo será bom outra vez. O Portugal moderno, vanguardista, o das “novas fronteiras” da economia, da tecnologia e da civilização, estará de volta.

Portugal não vai ser nunca periférico, não vamos ser encurralados aqui neste canto extremo junto do Oceano. Queremos estar no centro da Europa, esse é um desígnio nacional deste século XXI. Vamos pois é ligar-nos a Madrid e ficamos logo dentro, muito dentro, do Mundo que importa. Descobriremos o caminho férreo ultra-rápido para a Europa, construiremos mais estradas e até um grande e moderníssimo aeroporto.

Vem aí uma nova epopeia descobridora. Venderemos de tudo e compraremos de tudo dessa e por essa Europa – e tudo muito rápido porque há imensa pressa em que tudo se faça. Os portugueses vão ser muito ricos, haverá muita “canela e ouro” e a República dará a redenção por mais um século a este imenso Portugal.


Notas numéricas auxiliares: No Programa até 2013 estarão inevitavelmente incluídas reduções das despesas correntes de muitas centenas de milhões de euros. Vamos ficar a saber como em cada ano vão evoluir algumas dessas despesas como, por exemplo, as remunerações da administração pública, as pensões, os subsídios diversos, as despesas de saúde, de educação, as militares, ou as de justiça. Quanto à importantíssima variável do crescimento económico, se este for projectado por perto do actual potencial de crescimento da economia não poderá ser muito superior a 1 por cento em média – o que dará qualquer coisa como 1.600 milhões de euros apenas. Para a redução dos tais 10.000 milhões ao longo dos três próximos anos muito mais será necessário, portanto, quer do lado da redução da despesa, quer do eventual aumento das receitas. É por conseguinte uma “grande quadratura do círculo”, ou melhor um “pentagrama de ouro” para o nosso voluntarioso Governo. Mas eles vêm aí e estão prontos para governar. Silêncio, muito silêncio portanto, não se incomode tanta e tão prestimosa mestria!

José Pinto Correia, Economista

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

A Liderança pelos Princípios (e a Democracia em Portugal)

“Os princípios são os porquês de fazer; as práticas são o que e o como fazer”, adaptado de Stephen Covey (em “Principle-Centered Leadership”)

Os líderes nem sempre são escolhidos pelos liderados ou seguidores. Em muitas organizações que são estruturantes da nossa vida colectiva, como as empresas, as igrejas ou os exércitos, a escolha dos líderes é feita por mecanismos diferentes daqueles que comummente caracterizam a democracia política.

Na democracia política é regular que de tempo a tempo os liderados, cidadãos votantes, sejam chamados a escolher os seus principais líderes políticos e mesmo os seus primeiros responsáveis de Governo.

São princípios básicos de uma liderança política a lealdade, a equidade, a justiça, a integridade, a honestidade e a confiança. Estes princípios que definem e orientam uma liderança política tanto a podem fazer oscilar para o lado da estabilidade, se mantidos escrupulosamente ao longo do tempo de mandato, como para o lado da desintegração e da destruição se forem continuadamente desprezados nesse mesmo período de condução da vida política.

Uma liderança eficaz a prazo implica, por conseguinte, que os líderes principais sejam portadores de princípios reconhecidos, sendo que esses princípios devem constituir os pontos cardeais da acção política desses líderes.

O que se deve esperar destes líderes políticos é que se movam segundo os princípios que enunciem publicamente, que estes tenham uma base moral maioritariamente aceite, que conduzam as suas escolhas e acções segundo essas bases morais, e estejam sempre disponíveis para se sujeitarem ao escrutínio público responsabilizando-se perante os seus eleitores pelas suas escolhas e as consequências gerais que delas decorrem.

Os seguidores ou liderados tenderão a prazo a confiar instintivamente nos líderes que exibam personalidade fundada em princípios correctos; a legitimação dos líderes em funções é obtida por relações de íntima confiança com os liderados, as quais se vão sucessivamente obtendo com base na percepção de que os líderes respeitam os princípios moralmente aceitáveis e que publicamente prometeram cumprir.

Os princípios de uma liderança não se modificam, por isso, circunstancialmente por conveniências momentâneas; os princípios são os “marcadores dos caminhos” das lideranças, eles são auto-evidentes e constituem leis que se auto-validam.

Os líderes não podem confundir os seus liderados sobre os seus princípios que norteiam as suas opções e actividades e devem evitar que se formem confusões nos liderados sobre o rigor e a veracidade desses princípios. Não podem ao mesmo tempo deixar que se formem ou suscitem dúvidas de que os princípios que definiram não se aplicam continuadamente em todos os tempos e lugares, que esses princípios são constantes e que o seu estrito cumprimento não pode ser colocado em causa a qualquer título.

A permanência dos princípios de um líder, o seu rigoroso cumprimento e observância em toda a sua acção, é o que o enobrece, lhe dá poder de agir continuamente, e inspira confiança nas pessoas que seguem e apoiam a liderança.

No prazo relativamente alargado dos mandatos recebidos eleitoralmente, a prosperidade de uma liderança advém da fidelidade aos seus princípios, da correcção com que eles são praticados. Na raiz de muitos declínios de lideranças estão as falsidades e as práticas enganadoras relativamente aos princípios previamente definidos e que tinham uma base moral generalista.

Os princípios de uma determinada liderança devem ser os veículos portadores de valores, modos de conduta, escalas de valoração de opções, padrões de avaliação do que é bom ou mau, do certo e do errado, do proporcional e do desproporcional, do justo e do injusto, do aceitável e do inaceitável.

Nas escolhas e acções concretas dos líderes democráticos, que publicamente tenham aceitado reger-se por princípios de moralidade inquestionável, não podem ser aceitáveis condutas que desenvolvam estratégias e tácticas de manipulação com efectiva visibilidade social. Estas estratégias e tácticas de manipulação deterioram progressivamente a confiança dos eleitores e liderados e impedem a pretensão de esses líderes se manterem como inquestionavelmente legitimados e responsáveis.

A retórica dos líderes deve também ter correspondência com a realidade dos factos, sob pena de desmobilizar a legitimidade das escolhas e acções dos líderes. O discurso público das lideranças que recorra demasiado tempo a desvios da realidade ou a conjuntos de factos (ou estatísticas) que possam ser facilmente desmentidos por observadores tidos como confiáveis e avalisados é contraproducente para a manutenção da integridade da própria liderança.

Duas das melhores e mais respeitadas características dos líderes políticos são, assim mesmo, a sua autenticidade e humildade. A primeira respeita ao modo como é percebida pelos liderados a verdade das suas propostas e opções; a segunda diz respeito ao modo como os líderes aceitam os seus erros e fragilidades e as correcções sugeridas por outros. O contrário da autenticidade é a desconfiança e o contrário da humildade é a arrogância.

Um bom líder tem de ter um “centro de vida” muito forte. Nesse centro está o seu poder efectivo, e é aí que está a também a sua orientação, sabedoria e segurança, que constituem pilares da sua afirmação pessoal; é também nesse “centro de vida” que o líder tem a definição da sua missão pessoal e o substrato da sua cultura humana.

A cultura humana do líder pode apreciar-se fundamentalmente na sua integral aceitação da regra de ouro da convivência entre as pessoas: “a de tratar os outros como gostaria que os outros tratassem a ele”.

Os líderes que baseiam a sua liderança em princípios são homens e mulheres de carácter que trabalham com competência e que procuram semear e plantar para poderem colher; que constroem as suas vidas e as relações com os outros com base nesses princípios que naturalmente aceitam; e que também estabelecem os seus acordos e contratos e a gestão dos processos em que actuam com respeito por esses mesmos princípios.

Há então espaço para a definição da “confiabilidade” de uma liderança, ou seja, a medida ou grau de qualidade da confiança que se tem ou pode ter nas propostas, condutas ou escolhas de um líder. Esta qualidade da liderança ou do próprio líder é baseada no seu carácter, aquilo que ele é como pessoa, que realça desde os traços essenciais que definem a sua personalidade e a integridade das suas opções e decisões.

Na apreciação da “confiabilidade” de uma liderança intervêm juízos de valor e apreciações materiais, mas também a avaliação da competência com que os respectivos líderes desempenham os seus cargos. E no limite, quando exista deterioração dessa confiabilidade na liderança, pode estar em causa a própria avaliação e valoração sobre o carácter dos líderes.

A confiança, todos temos cabal noção disso, é a base estruturadora das relações entre as pessoas, e só ela permite o estabelecimento permanente de um fluxo claro e transparente de comunicação, da salutar empatia, e do reforço da sinergia e da interdependência entre os líderes e os liderados.

Para se confiar num líder é, assim, indispensável que os liderados ajuízem favoravelmente do seu carácter e da sua competência. E isso porque só com a manutenção da percepção do bom carácter e indiscutível competência do líder este estará em condições evidentes para manter a aceitação das suas escolhas e decisões frequentes.

O estabelecimento de um clima permanente e inultrapassável de falta de confiança entre o líder e os liderados permite ou favorece o rompimento das relações entre as pessoas e pode ser o desenlace fatal de uma liderança. Sem níveis aceitáveis de confiança num líder os liderados repudiam a sua liderança e procuram sabotá-lo ou substitui-lo o mais rapidamente possível.

E em períodos de crise, caracterizados por grandes dilemas e dificuldades, podem emergir grandes líderes. Porque estes “grandes líderes são o produto das grandes causas”.

Nota de Topo de Página: Alexis de Tocqueville, diplomata francês, analisou há mais de 150 anos a realidade democrática americana num livro que ficou como sendo um dos textos básicos da ciência política dos dias de hoje (“A Democracia na América”). Dizia ele a certa altura o seguinte: “Muita gente, na Europa, pensa sem o dizer ou diz sem o pensar, que uma das grandes vantagens do sufrágio universal é a de colocar homens dignos da confiança do povo na direcção dos assuntos públicos. O povo não seria capaz de governar-se a si próprio, dizem, mas deseja sinceramente o bem do Estado, e o seu instinto nunca falha quando se trata de designar para exercer o poder aqueles que estão animados do mesmo desejo e são mais capazes.
Quanto a mim, o que vi na América não me leva de modo algum a pensar que assim seja. Quando cheguei aos Estados-Unidos, fiquei surpreendido ao ver quanto mérito havia entre os governados, e quão pouco se encontrava nos governantes. É um facto notório que hoje, nos Estados-Unidos, os homens mais notáveis raramente são chamados a exercer funções públicas e é forçoso reconhecer que isto se foi acentuando à medida que a democracia ultrapassava todas as suas antigas limitações. É evidente que, nos últimos cinquenta anos, a raça dos homens de Estado americanos escasseia notavelmente” (A Democracia na América, Alexis de Tocqueville, Livro I, 1835).

E em Portugal em 2010? Como se vê e se sente desmesuradamente estamos mal ou pior?!

José Pinto Correia, Economista

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Para onde vai Portugal (ou a história do fim dos dias)?

“O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”, Lord Acton

Quem esteve atento à vida política e económica nacional nos últimos dez dias há-de ter uma ideia confusa do que é agora nestes dias a realidade tristonha e incaracterística da nossa democracia. Ou melhor daquilo que foi possível que os homens que detêm o poder de governar através dos votos dos cidadãos da República fizessem da vida pública e dos anseios e expectativas dos seus representados.

Lembremos então alguns dos principais episódios desta recentíssima época malfadada.

O Governo da República comemorou cem dias (e cem noites, já agora, também). E o Senhor Primeiro-Ministro cercou-se de mulheres para uma fotografia de sabe-se lá o quê. O que tinha o Governo para comemorar que os portugueses pudessem ter visto ou sentido nas suas vidas? Seria a lei do casamento homossexual, a entrega do Orçamento de Estado na Assembleia? Se não havia substância governativa que se recorde nestes três primeiros e longos meses de governação, então tratou-se, por conseguinte, de mais uma tentativa de montar uma cena de propaganda, ocupar momentaneamente e uma vez mais o espaço mediático, e no caso completamente vazia de alcance e significado. Manobra, mais uma daquelas em que este Governo tem sido useiro.

Ao mesmo tempo em que o Governo tentava ocupar o espaço mediático nesta manobra, o país assistia no Parlamento e fora dele às discussões em torno da Lei das Finanças Regionais, feita sobre um projecto provindo da Assembleia Regional da Madeira onde tinha tido a unanimidade dos partidos representados. Nesta negociação política constatava-se que o Governo procurava atirar para cima da oposição, melhor das várias oposições que estavam concordantes entre si, o anátema de serem gastadores e irresponsáveis por quererem atribuir ás Regiões Autónomas mais uns milhões de euros anuais e delimitarem os respectivos valores do endividamento.

No meio de acaloradas discussões na praça pública e na Assembleia da República chegou a constar a possibilidade de demissão do Ministro da Finanças ou até do Governo se a Lei avançasse com os votos conjuntos de toda a oposição. Convenhamos que para um Governo que só repentinamente se transformara num paladino intransigente da defesa das finanças públicas e do não aumento da despesa pública não ficava nada mal na sua função de governação do país que abrisse uma crise política de consequências imprevisíveis, com o país em observação internacional pelos seus credores, a troco dos cinquenta milhões de euros em que a redacção final da Lei se veio a figurar. Este era, aliás, por mais estranho que possa parecer, o mesmo Governo e o mesmo Ministro que no ano anterior tinham autorizado a Madeira a aumentar o seu endividamento em praticamente cento e vinte milhões de euros.

Uma crise e uma teatralização ministerial deste tamanho, vista à lupa no estrangeiro, por causa de cinquenta milhões de euros, num orçamento total do estado que deve ser de praticamente oitenta mil milhões? Isto é responsabilidade e boa governação ou é mera encenação para desviar as culpas dos défices e da dívida pública enormes a que o Governo conduziu o país nestes últimos anos e para passar ao lado dessas importantes questões?

Tratou-se obviamente, disso já agora não pode haver dúvidas, de lançar uma enorme cortina de fumo na tentativa grotesca de fazer associar a oposição política ao desastre das contas públicas que é só agora completamente reconhecido – e isto feito a pretexto de umas meras centésimas do défice projectado para 2010 pelo mesmo Governo e Ministro das Finanças no documento do Orçamento de Estado entregue dias antes no Parlamento.

Ao mesmo tempo que estas cenas se passavam em S. Bento e locais limítrofes, Portugal assistia a quedas vertiginosas da bolsa portuguesa, aos aumentos do custo da dívida pública e dos CDS que cobrem o risco dos investidores internacionais, às afirmações categóricas do FMI sobre a nossa economia e à recomendação do seu economista-chefe Olivier Blanchard (que tão bem conhece a nossa realidade económica) de diminuição dos salários como instrumento de regeneração competitiva (com semelhanças óbvias com as antigas desvalorizações do escudo), e ainda às ímpares afirmações do Comissário Europeu Almunia sobre a comparabilidade da situação portuguesa com a da Grécia.

Dirão os espíritos mais afins da “cantilena da Rosa”, nos dias que vamos vivendo, que tudo isto que desaba sobre Portugal são coisas derivadas da recente aprovação de uma nova Lei das Finanças Regionais, que tem mais uns milhões de euros para a Madeira e Açores em 2010 e limita os seus possíveis níveis de endividamento futuro. Portanto, segundo estas boas opiniões (que são uma ideação muito útil), a situação que os analistas vinham reconhecendo, sobre a qual a triste Dra. Manuela Ferreira Leite falava em Setembro passado na campanha eleitoral e que a levou a dizer ao Engenheiro Sócrates de que o Programa que ele apresentava ao país era impraticável, tudo isso são coisinhas menores. O que agora importa mesmo, como inegociável e inaceitável, são os milhões para a Madeira do Alberto João, esse traste que vive desde há décadas à conta dos cubanos do Continente.

Olhem que não! Lembramo-nos que por exemplo o endividamento externo e a subida vertiginosa da dívida pública nos últimos anos nunca foram verdadeiros problemas da Nação para o “emblema da Rosa”, pois tratava-se, como se dizia aos quatro ventos nos corredores do poder governativo, apenas de colocar em funcionamento mais umas quantas centenas de torres eólicas e o problema do mar de dinheiro que toda a nossa economia pública e privada devia ao estrangeiro desaparecia. E o Senhor Engenheiro não se cansou de repetir esta “reengenharia do endividamento”, de cada vez que o entrevistavam e lhe pediam a douta versão governamental sobre a temática em causa. Tudo isso era de somenos num país moderno e a caminho do progresso e se resolveria, consequentemente, por artes mágicas, claro, porque os magos estavam ao leme da República.

Só que agora o nosso patrono dos grandes investimentos, que são feitos sabe-se lá com que notas (estrangeiras e obtidas nos mercados do dinheiro além fronteiras) e que não contam nada para o endividamento e a dívida segundo os seus defensores pródigos, tem pela frente a realidade das contas do país – desde os mais de 9 por cento do tal défice virtuoso, até aos quase oitenta da dívida pública e aos mais de cem de endividamento. E tem de continuar a dar muitas centenas de milhões para as empresas do Estado, tipo RTP, RDP, Metros de Lisboa e Porto, Carris, CP, REFER, REN, etc., ao mesmo tempo que julga ser capaz de mobilizar os muitos e muitos milhares de milhões para aquelas obras gigantescas.

Só que o caminho para glória começa a ficar cheio de escolhos. Anunciam-se já reavaliações de obras e as empresas começam a ficar com dificuldades em obterem créditos pelos preços anteriores. Cortam-se as verbas para o investimento público inscrito orçamentalmente. O céu que não tinha limites fica agora negro para o nosso prestimoso Governo. O que faz perante esta circunstância o homem do leme – o nosso Engenheiro Sócrates?

Relê longamente Maquiavel, magica com os seus conselheiros íntimos, e aceita os conselhos dados ao Príncipe. E então, a partir daí, o que lhe importa para servir de alçapão e escape e para criar um novo circo de tragicomédia é inventar uma nova manobra de querer esticar as pontas da corda que envolve a nossa garganta. E assim surge nos mentideros comunicacionais, como convém a esta governação sombria, a chantagem dum primeiro-ministro que apenas consegue dar à luz um Orçamento que só reduz despesa praticamente na medida em que congela salários dos funcionários do Estado e alimenta aumentos hipotéticos de receitas extraordinárias de vendas de património e quejandas, e que é incapaz de cortar despesas correntes nos inumeráveis departamentos do Estado.

Será que nos mercados e nas análises internacionais esta manobra de encobrimento dos verdadeiros dilemas do governo não teve efeitos na queda vertiginosa da bolsa e nos prémios adicionais associados à nossa divida? Ou temos de acreditar que todo o mal de Portugal resulta de algo que ainda nem teve qualquer efeito contabilístico – a tal malfadada Lei das Finanças Regionais?

Uma recomendação final para toda esta trama que nos escurece as vidas e o futuro parece que vem aqui a propósito. Talvez se pudesse recomendar que os nossos principais governantes, com o Senhor Engenheiro na primeira fila da plateia, fossem ver o filme “Invictus”, agora nos nossos cinemas, e se inspirassem para se tornarem verdadeiros líderes e estadistas (como se vê que Nelson Mandela foi para a dificílima situação da África do Sul). E não simples “meninos ricos e mal acostumados” que se amofinam e se servem dos piores estratagemas de passar culpas.

E lembremo-nos que está aí à porta a verdadeira prova, o “cálice do Graal”, sobre o que quer e de que é capaz este Governo – a apresentação do “Programa de Estabilidade e Crescimento” para os próximos anos. Aí o Governo tem de dizer efectivamente ao que vem e como vai fazer a sua função durante os vários anos da legislatura, negociando as linhas fundamentais desse Programa com a oposição para lhe dar a imprescindível credibilidade interna e externa. E então já sem cortinas de fumo, à luz da ribalta, se verá sem outros quaisquer subterfúgios e “manobrismos”, se o Governo não nos confrontará antes com um novo acto falhado, novos estratagemas e manobrismos, e dará lugar a novas reacções dos mercados, das agências de “rating” e da própria Comissão Europeia.

Se assim for podemos estar perante mais uma década perdida e um verdadeiro caldo de “Instabilidade e Decréscimo” em vez das tão desejadas “Estabilidade e Crescimento” como pretensamente o Governo titulará o tal Programa, o que só pode querer dizer que o fim dos dias deste Governo e Primeiro-Ministro terá então chegado.

José Pinto Correia, Economista

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

O Portugal Maravilhoso – uma Rosinha no Canteiro!

Em terras de Viriato, de Afonso Henriques, de Camões, de Vieira e de Pessoa, vive-se hoje em 2010 como nunca foi em outros tempos. Vivem-se dias maravilhosos. O país está bem. Muito bem mesmo. Este é um “Portugal Maravilhoso”.

Há imensa riqueza pelos cantos da pátria, não há saudades de nada de ontem, só existem desejos imensos de caminhar depressa para diante para um novo e prometido progresso. A modernidade e a fronteira civilizacional andam no ar, e não há lugar onde elas não queiram e vão chegar.

A magia anda nos ventos e brisas que sopram em todos os pontos cardeais da Nação, vai nas ondas da rádio e da televisão, e os nossos líderes dão-nos essa mensagem categórica de que nada temem e que tudo é possível. Melhor mesmo é impossível, pois claro. Todos nós vemos isso, não se discute, o caminho é só um e tem grandiosos protagonistas e finalidades.

A clarividência dos nossos condutores é inaudita, que sorte a nossa, imensa, em poder contar com tão famosos e visionários dirigentes. Deixemos pois que eles façam o que têm a fazer, que é muita e muita obra generosa.

Os nossos futuros dias e anos, muitas décadas que venham no transcorrer imenso das vidas, tudo isso que é muitíssimo, estão tão prolificamente sustentados. As nossas crianças ou jovens nada têm a temer pois viverão num espaço de prosperidade como nunca, e com uma inolvidável modernidade e bem no ponto da fronteira civilizacional.

As novas descobertas do segundo milénio estão aí a surgir, Portugal será uma terra de sucesso e grandiosos feitos. O “Quinto Império” será agora preparado. A ínclita geração renasceu e está ao leme da nossa Nau – eles são os magníficos engenheiros, arquitectos, comunicadores, os verdadeiros artesãos dos “Novos Descobrimentos Portugueses”. E têm obviamente um símbolo eterno que os acompanha, a “Rosa” – a grande flor sem tempo e em nome da qual todos são obreiros e se curvam em sinal de respeito, muito respeito.

Os portugueses andam num rodopio de bonança, todos radiantes, felicidades muitas e estampadas em cada rosto, ares de bonomia e da mais tranquila construção de vidas suaves e luzentes. Nada nem ninguém suspira por algo diferente, por outra hipotética engenharia social, económica ou cultural. Todos estão encantados com o futuro que ali já vêem como benevolente e frutífero.

As ruas das cidades deste imenso Portugal estão num frenesim constante. As velhas casas são renovadas, nada é deixado ao desmando e ao abandono. As cidades são lindas, limpíssimas, as fontes jorram águas e os belos palacetes de tempos idos ali estão no seu melhor de sempre, majestosos, brancos e iluminados.

Todos os dias são radiosos e acalentadores e as pessoas no seu bulício permanente entram e saem das lojas, povoam os cafés e restaurantes, inundam cinemas e teatros, compram brinquedos, roupas, utensílios vários, e gastam dinheiro muito dinheiro, nem lhes importa o quanto.

Nas ruas perfeitas, sem máculas e perigos, circulam ininterruptamente os melhores automóveis, as belas máquinas soprando os éteres, com as boas almas em busca de passeios e viagens de negócio.

Nas escolas os jovens de hoje acumulam saberes, iluminam a sua inteligência e a sua versatilidade de pensar, e preparam-se para os trabalhos magníficos que o futuro preparado lhes destina. Nunca como agora tantos souberam tanto sobre tantas coisas. O conhecimento é a seiva do progresso, pois então. E assim se garante gentilmente a continuidade do projecto para o futuro que está nos anseios clarividentes dos nossos luminosos líderes.

Os nossos velhinhos são lindos também e estão extremosamente cuidados, em suas casinhas aconchegantes ou em bons e dignos lares. O Estado social, a fáctica providência, trata de lhes pagar religiosamente as suas magníficas pensões e reformas, que são o fruto saboroso das suas vidas de trabalho belo e suave. E com estes estipêndios valiosos, os nossos pais estão convenientemente capacitados para bem pagar os fabulosos serviços de que necessitam – seja das farmácias, seja da restauração e limpeza, seja mesmo da hotelaria de apoio.

Há em todos estes meandros da vida colectiva, portanto, um Portugal superlativo que todos podemos ver facilmente. Só não enaltece estas propriedades incomensuráveis que os portugueses vivem quem por mero escárnio e maledicência tem interesses esconsos e indecifráveis. Portugal é pois sem sombra de dúvidas um jardim à beira-mar plantado, um imenso “Roseiral”, onde perpassa o cheirinho doce do “Maravilhoso”.

E este nosso pequeno pedaço de terra, bafejado pela sorte e pela douta sapiência e visão prospectiva dos seus governantes, ainda vai tornar-se um “Imenso Portugal” – um novo “Quinto Império” de grandioso progresso, modernidade e descobertas!


Nota Solta de Catastrofista: Claro que nesta grandiloquente “estória pátria” que acima ficou não sobra linha ou papel para o défice orçamental dos 9 ponto tal (em vez dos cinco e tanto), dos mais de oitenta cêntimos de dívida pública directa por cada euro de produto, dos quase seiscentos milhões de juros ano da dívida, do endividamento de mais de cem euros em cada cem produzidos ao ano, dos seiscentos mil trabalhadores fora de fábricas, dos milhões de pobres, das pensões que quase não sobem, dos congelamentos salariais, dos doentes sem tratamentos a tempo e horas.
Essas minudências, como dizem os melhores arautos e os eternos trovadores do “Regime”, são próprias das reles continhas dos merceeiros e contabilistas.
Tudo isso, bem ao contrário, dizem os catastrofistas de plantão, são as aritméticas de um Portugal em que o Estado, essa entidade irreal e salvífica dos “Rosas e Vermelhos”, já aspira metade da riqueza do país.
Maravilhoso, mesmo, como diz o título desta prosa, é o nosso coração que tanto aguenta – até um dia em que estoire e se dê a tal “explosão” de que o “Senhor Presidente de Belém” falou...!

José Pinto Correia, Economista