quinta-feira, 31 de julho de 2008

Da Liberdade, Liberalismo e Utopia em Portugal

Felizmente tenho vindo a conhecer com alguma profundidade os contributos teóricos de vários pensadores associados à tradição liberal do pensamento político e filosófico.

Assim, desde Adam Smith, Stuart Mill, Friedrich Hayek, John Kekes, Karl Popper e, hoje mesmo, Isaiah Berlin, tenho vindo a ganhar sustento na minha concepção liberal do pensamento político e filosófico, a qual esteve praticamente ausente de todo o século vinte português (como, aliás, refere o historiador português Vasco Pulido Valente).

Em Portugal sempre nestes últimos cem anos a organização da nossa vida cultural e social, e até a económica, esteve bem longe dos princípios fundamentais que norteiam as concepções liberais, das mais clássicas anglófonas até às mais contemporâneas mesmo assentes na “armadilha potencial” da denominada terceira via.

Melhor, decorrendo do dizer clarividente de Berlin quanto aos conceitos de liberdade, o Portugal do século vinte optou por modelos e narrativas dogmáticas racionalistas que são características intrínsecas da concepção da liberdade positiva daquele autor.
Nesta acepção da liberdade, uma das duas para Berlin, os homens estão ao serviço de grandes projectos, uniformizadores das vontades e opções dos indivíduos, apontados à construção de utopias que racionalizariam as esferas individuais e gerariam a coerção das vontades e objectivos plurais das diferentes pessoas. E existem sempre, claro, os intérpretes privilegiados e superiormente esclarecidos desses desígnios, quer sejam líderes, partidos, militantes ou mesmo ditadores.

Por isso mesmo, Portugal assistiu primeiro, no início do século vinte com a implantação da República, à narrativa republicana, profundamente anticlerical, maçónica e carbonária. Uma vez fracassada esta, o mesmo Portugal passou depois ao totalitarismo salazarista de cinquenta anos. E desde os anos setenta, depois de Abril de 1974 (mais de trinta anos, portanto), à narrativa contínua da “utopia socialista ou do caminho para o socialismo”, sempre constitucionalmente consagrada.

E o liberalismo negativo, o outro sentido da liberdade para Berlin – o da liberdade no sentido negativo –, que corresponde à afirmação não coagida do indivíduo, dos seus objectivos especiais e únicos, da sua vontade e escolhas?

Esse ficou sempre em todo aquele século vinte em Portugal submergido nas sucessivas etapas de engenharia social, mais recentemente na reengenharia socialista, no sempre imbatível e inquestionável domínio avassalador do Estado, da sua racionalidade construtiva do denominado “interesse geral” e do “caminho da superação e da solução final”. Tudo dogmaticamente definido, construído pela supremacia absoluta e absurda da razão que tudo ilumina e esclarece, cerceando continuadamente e com intensidade o espaço de afirmação liberta de peias e constrangimentos dos indivíduos, e destes como pessoas.

Por isso, hoje, no novo século e milénio, neste mesmo Portugal, continua a procurar-se sem vislumbre significativo o espaço da “sociedade civil”, do cidadão e da cidadania, da responsabilidade individual e dos deveres. Porque os direitos e a irresponsabilidade têm matriz constitucional e cautela jurídico-legal mais do que demonstrada, campeiam como fundamentais do cimento sociocultural e político que estrutura a Nação.

O Estado, com o seu poder imenso e a sua pretensa eficácia, comanda, intervém, gere, regula, cobra, exige e provém aos desfavorecidos numa moda assistencialista que sobrevive da ditadura do “Estado Novo”. E este Estado está, diz a narrativa prevalecente, ao serviço de um “esplendor de justiça social, de igualdade, de solidariedade”.

Onde e como ficam os indivíduos e a sua liberdade negativa nesta narrativa dogmática racionalista, monista e pretensamente historicista, de criação de uma “utopia de perfeição”?
Ficaram, ficam e ficarão submetidos à coerção, às contingências impostas, às vontades alheias, limitados na sua capacidade de afirmarem as suas escolhas individuais, de serem eminentemente livres no sentido negativo que lhe atribuía Berlin. Por isso mesmo, a comunidade e o seu espírito é frágil, a sociedade civil inexpressiva, o valor individual desrespeitado, a responsabilidade individual denegrida e a pessoa humana e a respectiva esfera de protecção jurídica e valorativa depreciada.

O liberalismo, a concepção negativa de liberdade que valoriza o indivíduo e as suas capacidades e vontade específica, e o valor inestimável e influente destas ideias é francamente minoritário em Portugal.

Prevalecem, por isso, as visões colectivas das “grandes obras e desígnios”, de que o Estado é o máximo intérprete e centro de poder – ainda que tomado por “intérpretes interessados” –, e os sempre alardeados e nunca definidos “interesse e vontade geral” expressos habitualmente no denominado, mas também nunca devidamente justificado, “interesse público”.

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