terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Zero, “Zeroismo” e Lengalenga no Desporto

Está a chegar a hora de se fazer um balanço da governação no desporto destes quase quatro anos. E para esse balanço se fazer é necessário elencar as medidas de política e os programas que foram colocados efectivamente no terreno desportivo para darem outra dimensão e dinâmica à prática desportiva, desde os estratos populacionais muito jovens aos mais idosos.

Porque governar o desporto não pode ser apenas fazer no início do mandato um “Congresso do Desporto” pomposo e do qual nem se conhecem as respectivas conclusões oficiais, e no decurso do mandato construir ou anunciar a construção de infra-estruturas, ou levar uma eternidade a regulamentar uma lei de bases. Uma governação no desporto não é, não pode ser como agora cada vez mais se afigura um “ministério de obras públicas e uma assessoria jurídica” no desporto.
Porque em Portugal, como sucede no denominado “Modelo Europeu do Desporto” que caracteriza o desporto europeu diferentemente do americano, o Estado tem um papel determinante na promoção e financiamento do sistema desportivo. Por isso mesmo, desse mesmo Estado, e do Governo que é o seu órgão executivo e tutela do desporto, se exige que tenha uma visão clara e de largo prazo, que exerça uma efectiva liderança e seja capaz de definir as linhas essenciais de evolução do desporto – e que as torne conhecidas e comunique ampla e democraticamente a todos os actores envolvidos no respectivo sistema desportivo, desde a base geral à elite de alta competição.

Os governantes do desporto têm de ser líderes efectivos capazes de definirem o sentido estratégico da evolução, mobilizarem em torno dessa visão e darem-lhe a devida legitimidade, estarem na linha da frente das mudanças que sejam necessárias à realização dos objectivos, promoverem o conhecimento técnico e científico e a formação dos respectivos recursos humanos, dinamizarem as respectivas redes e comunidades de conhecimento que sustentem a melhoria da qualidade de processos, estruturas organizacionais e métodos de trabalho.

A promoção do desporto, da sua prática pela população, ou da melhoria do sistema federado competitivo, exigem a concepção de quadros de desenvolvimento, reflexão e criação de pensamento devidamente elaborado e baseado em bons diagnósticos de situação. Só se pode intervir decisivamente quando se conhecem as situações de partida com a devida profundidade. E no caso do desporto essas bases são praticamente inexistentes ao nível das autoridades governamentais – ou pelo menos são desconhecidas.

Ora, tudo isto que seria indispensável para se poder assumir uma salutar política pública desportiva tem inequivocamente faltado neste Governo.

Ficam, por isso mesmo, nos respectivos governantes apenas as muitas e insistentes frases soltas, algumas poucas linhas de discurso quase sempre em volta do futebol e do desporto profissional (que vai caminhando aceleradamente para um abismo) e umas, muitas, fotografias de inauguração de relvados sintéticos e outras ao lado de desportistas de eleição que dão jeito para a imagem desses mesmos governantes. A nossa presença competitiva em Pequim 2008, nos Jogos Olímpicos, é disso exemplo paradigmático – bastará compulsar a imprensa desportiva, os sites da Secretaria de Estado e do IDP antes e durante o evento para o poder confirmar exaustivamente.

Que dizer das miserandas palavras que de tempos a tempos o ministro da Presidência, que é a tutela máxima do nosso desporto, diz do mesmo desporto que devia governar? São, dizemos nós, caracterizadas sempre por uma mediocridade praticamente absoluta e absurda, só possível num País que não se leva a sério e que apenas cultiva o futebol – um Portugal que está “futebolizado”! Muita lengalenga portanto, que é o mesmo que nada em cima de nada.

Vai por isso decorrer quase certamente todo um mandato governativo de mais de quatro anos sem que se conheça um único documento produzido pelas autoridades tutelares indicando os seus desígnios e objectivos para o desporto português. E assim vai praticamente ser impossível avaliar com seriedade e rigor o nível de alcance dos objectivos da política sectorial, o que permite aos governantes saírem praticamente sem escrutínio social sobre o modo como se conduziram no uso do poder, no que fizeram e no que poderiam e deveriam ter realizado. Não é possível avaliar sem se medir e não se pode medir aquilo que não se definiu.

Faltam estudos no desporto em Portugal num conjunto diversificado de temas que vão desde a organização e planeamento estratégico nas federações desportivas aos níveis de prática regional e local ou mesmo à organização em rede do desporto escolar, muitos deles devendo ser centrados nas perspectivas da economia e da gestão do desporto que têm sido praticamente esquecidas em Portugal. Aqueles estudos devem ser feitos a bem da melhoria da própria fundamentação e sustentabilidade das opções e programas públicos, pois introduzem nas escolhas e decisões políticas a indispensável base racional de sustentação. Ora, nem esses estudos se fazem, nem o Governo sente a sua necessidade, nem muito menos é capaz de suscitar e apoiar devidamente a criação de um único “Centro de Estudos sobre Economia e Gestão Desportiva” em Portugal, baseado por exemplo nas capacidades de investigação científica e académicas existentes nas nossas Universidades públicas – como sucede no Reino Unido, por exemplo, desde há muitos anos.

Aliás, como se sabe a Secretaria de Estado do Desporto é também responsável pela política de juventude do Governo em Portugal. O que ainda mais agrava a situação pois não existe também neste domínio um único documento que destaque as principais linhas de orientação e de fomento do desporto juvenil por parte daquela tutela governamental.

Como é possível tutelar o sector da juventude de um país sem ser capaz de produzir um documento que defina quais os caminhos a prosseguir para promover, patrocinar e financiar a prática desportiva juvenil?

Não basta, não é sério, é inaceitável que tudo aqui também se reduza apenas a algumas palavras, notícias circunstanciais e inaugurações de instalações. Uma política de promoção do desporto juvenil exige muito mais do que isto e implica a preparação do trabalho conjunto no terreno de múltiplos actores, com destaque para as escolas e as autoridades municipais – constituindo redes de desenvolvimento desportivo baseadas em verdadeiras parcerias estratégicas com organização própria e alicerçadas em apoios públicos reais.

Quem quiser certificar-se de que esta manifesta incapacidade é objectiva e indisfarçável vá dar uma cuidada olhadela para os sites oficiais da Secretaria de Estado da Juventude e Desporto ou também para o do Instituto do Desporto de Portugal (IDP). Verá que aí não encontra nenhum, nada, zero, do que anteriormente referimos. Ambos os sites são apenas simples repositórios noticiosos, relevam da simples cobertura mediática do membro do Governo num caso e reportam eventos desportivos no caso do IDP. Portanto, trabalho de fundo e fôlego sobre o nosso desporto, sobre as opções de política desportiva e de juventude a esta associada, nada, uma autêntica “zerada”.

No mesmo site da Secretaria de Estado quem se quiser dar ao trabalho de visitar agora a “área” destinada ao Conselho Nacional do Desporto encontra também, mais uma vez, um absoluto vazio documental. Não é possível conhecer nada do que têm sido as discussões e tomadas de posição formal daquele Conselho, não se conhece nenhum estudo ou diagnóstico do nosso desporto. Parece que este órgão apenas se destina a cobrir com idêntica prestação organizacional o mesmo vazio estratégico e doutrinário do Governo em funções. Tudo feito, também neste caso, à imagem e semelhança do seu criador – o actual Secretário de Estado do Desporto, Laurentino Dias (e a sua nefanda equipa da tutela desportiva portuguesa), sempre tão mediático mas como se vê nada prolixo em fundamentar a sua governação.

Por isso, neste caldo de cultura governativa do desporto nacional, também os jornais desportivos que vamos tendo em Portugal não reflectem substantivamente sobre o desporto, a sua natureza e desafios fundamentais, sobre as suas deficiências organizativas e de gestão, ou sequer sobre a exasperante falta de enquadramento estratégico de desenvolvimento e de uma verdadeira e efectiva política governamental, e apenas enchem habitualmente as suas páginas diárias com textos que propagandeiam latamente sobre as virtudes dos grandes clubes de futebol, ou sobre as pressões, truques, “negócios” e impressões de diversos actores e agentes desportivos, ou mesmo sobre os magníficos atributos físico-atléticos do nosso ídolo Cristiano Ronaldo.

Neste “reino do zero”, do “Zeroismo” (o socialismo do faz que nada no desporto), dos muitos nadas que baseiam a governação e a nossa política pública desportiva, aparecem com enorme facilidade grandiosos anúncios para a organização do Mundial de 2018 em que embarcam os incautos e são muitos (como se os espanhóis, que têm inequívoca capacidade financeira para tal empreitada e estão a construir muitos novos estádios por todo o seu país, precisassem em alguma coisa deste nosso prestimoso “burgo perpetuamente madailizado”), como parece que campeiam no IDP (e agora alguns comentários vão dando disso nota profusa) os absolutismos, os atrasos na liquidação de compromissos financeiros superiormente assumidos e os impróprios usos dos escassos fundos públicos existentes para a promoção do desporto.

Com isto tudo tal qual está e parece que vai continuar, o desporto em Portugal só pode mesmo vir a ser “um terreno queimado” que começa a ser patentemente vislumbrado no desporto profissional e percorre por inacção política os restantes sectores desportivos, desde o escolar ao das modalidades ditas amadoras. Quando ao mesmo tempo e ainda para maior afundamento se perspectiva neste momento no horizonte a perpetuação de um Comandante salva-vidas no topo do movimento associativo, isto é, na Presidência do Comité Olímpico de Portugal, ao qual o mesmo Governo porventura virá a disponibilizar um novo quadro de apoio financeiro para gerir como de antanho, com os resultados que ninguém mais uma vez quererá ou poderá avaliar algures lá para 2012-2016.

Tudo isto é de menos, muito pouco do que uma governação com visão e um projecto estratégico e mobilizador do nosso desporto poderia e deveria ser. E dá inquestionável direito à manifestação desta nossa obrigada indignação. Que ela possa dar alento a um sobressalto cívico de quem se interessa e quer ser parte de uma cultura desportiva exigente, com visão e estratégia claramente assumidas e partilhadas aos diferentes níveis e sectores do nosso sistema desportivo.

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