Hoje de manhã cheguei ainda bastante cedo ao trabalho, já depois de ter atravessado a por estes últimos dias praticamente esvaziada de carros “Ponte sobre o Tejo”. À hora a que cheguei ainda só os senhores da segurança e mais um ou outro dos meus colegas teriam também já chegado.
Trabalhei depois durante praticamente toda a manhã, até cerca das treze horas, no meu gabinete de trabalho, sentado à secretária, com computador e com o ar condicionado e as luzes de tecto acesas.
Saí para ir almoçar como habitualmente para a minha tasquinha de serviço a cerca de cinco minutos de caminhada a pé. Almocei rapidamente também.
No meio do repasto um dos habituais comensais lia o Jornal “A Bola” e exclamava: a indemnização vitalícia definida em tribunal à família do vitimado jogador húngaro de futebol do Benfica Féher podia tramar muitos patrões portugueses.
Dizia o comensal ao sócio da casa com quem falava que aquilo que tinha acontecido ao jogador não era um acidente em trabalho, porque ele não tinha caído de um andaime, não tinha levado com uma ferramenta na cabeça, não tinha caído num buraco, não tinha sido vitimado pelo trabalho mas antes pela falência do seu órgão cardíaco. E adiantava mais: que se esta decisão pegasse qualquer trabalhador que morresse com idêntica lesão podia levar o seu pequeno patrão até à falência.
Acabei o meu almoço e vim rua fora de volta até ao meu local de trabalho. Que é, lembre-se, o tal gabinete com secretária, computador, ar condicionado e luz de tecto.
Mas antes de entrar o meu portão eis que me dou com um trabalhador de obras de rua. O homem de meia-idade, mais de cinquenta anos certamente, estava a trucidar alcatrão com um martelo pneumático barulhento e avassaladoramente trepidante. O corpo do operário tremia como varas, e ele fazia imensa força física para que o aguçado cabo afiado se enterrasse alcatrão dentro.
Eis senão que do outro lado da rua um polícia se abeira do operário e lhe pergunta, uns poucos instantes depois de perceber o cenário do trabalho em que ele se movia, porque ele não usava os auscultadores que estavam dependurados numa cerca metálica envolvente da obra.
E responde-lhe prontamente o afanado trabalhador com uma acentuação linguística própria de um qualquer país de leste europeu: se for assim não consigo ouvir o martelo a chegar ao fundo e trabalhar tão rápido e eficazmente!
Do outro lado dessa mesma rua, olhei e vi um português bem vestido, trinta e tantos anos, todo vertical, com um gorro enfiado na cabeça e luvas de mão. Este estava ali mas não naquela tal obra. Estava isso sim era a arrumar carros em cima dos passeios bem ao lado do tal agente da autoridade.
Entrei o meu portão e fui sentar-me ao meu computador de secretária, com as luzes do tecto acesas, mas com o ar condicionado agora desligado porque estava quente suficientemente o ambiente, e vai de dedilhar esta historieta da nossa crua realidade nacional.
Acho que tudo isto diz imenso, é um quadro grotesco e tristemente realista da nossa situação de crise gravíssima, e diz uma enormidade sobre a nossa trágica situação económica, financeira, ética e moral.
O trabalho, como se ouve à noite na televisão quando estou de regresso ao meu lar, tem de ser digno, com direitos e bem pago. Tudo isto parece certo, muito certo mesmo. Mas não é que ainda há quinze dias o Jornal “Expresso” também dizia que há empresas industriais do norte de Portugal à procura de empregados/trabalhadores em áreas geográficas cheias de desempregados e que não conseguem encontrar candidatos.
Não sei se aquele operário estrangeiro da frente do meu portão ganharia muito mais que o famosíssimo salário mínimo. O que concluí desta cena da realidade viva deste Natal de 2010 é que aquele operário estava a trabalhar duramente e que a sua dignidade excessiva até lhe impunha que se martirizasse mais do que seria necessário em nome da sua ética pessoal de trabalhar rápida e eficazmente.
Logo à noite quando me voltar a sentar em frente da televisão a ver os Telejornais diários vou retornar provavelmente a ouvir um qualquer dirigente sindical dos catedráticos do regime a zurzirem contra os patrões e o Governo por termos tantos desempregados e tão baixos salários. É ponto assente que essa narrativa reaparecerá algures numa qualquer notícia do dia nesse meu serão, depois de mais um dia em que Portugal se endividou outros vários milhões de euros aos prestamistas externos.
E agora que acabo este escrito ainda continuo a ouvir lá fora ao relento e sem tampões nos ouvidos o tal operário cinquentão a martelar o alcatrão, tremendo vigorosamente por todo seu corpo pela força imensa do pneumático. Ah! o arrumador protegido de barrete e luvas lá continua, agora uma centena de metros mais abaixo, a ganhar a moeda de cada dia um pouco mais distanciado do polícia que continua impávido e sereno no mesmo lado da rua: o lado contrário do tal operário (que da maneira como eu me situo na cena é o meu lado esquerdo, vulgarmente conhecido também como o do coração e o do trabalhadores de condição moral inequívoca e de esforço árduo).
José Pinto Correia, Economista
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