quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Para onde vai Portugal (ou a história do fim dos dias)?

“O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”, Lord Acton

Quem esteve atento à vida política e económica nacional nos últimos dez dias há-de ter uma ideia confusa do que é agora nestes dias a realidade tristonha e incaracterística da nossa democracia. Ou melhor daquilo que foi possível que os homens que detêm o poder de governar através dos votos dos cidadãos da República fizessem da vida pública e dos anseios e expectativas dos seus representados.

Lembremos então alguns dos principais episódios desta recentíssima época malfadada.

O Governo da República comemorou cem dias (e cem noites, já agora, também). E o Senhor Primeiro-Ministro cercou-se de mulheres para uma fotografia de sabe-se lá o quê. O que tinha o Governo para comemorar que os portugueses pudessem ter visto ou sentido nas suas vidas? Seria a lei do casamento homossexual, a entrega do Orçamento de Estado na Assembleia? Se não havia substância governativa que se recorde nestes três primeiros e longos meses de governação, então tratou-se, por conseguinte, de mais uma tentativa de montar uma cena de propaganda, ocupar momentaneamente e uma vez mais o espaço mediático, e no caso completamente vazia de alcance e significado. Manobra, mais uma daquelas em que este Governo tem sido useiro.

Ao mesmo tempo em que o Governo tentava ocupar o espaço mediático nesta manobra, o país assistia no Parlamento e fora dele às discussões em torno da Lei das Finanças Regionais, feita sobre um projecto provindo da Assembleia Regional da Madeira onde tinha tido a unanimidade dos partidos representados. Nesta negociação política constatava-se que o Governo procurava atirar para cima da oposição, melhor das várias oposições que estavam concordantes entre si, o anátema de serem gastadores e irresponsáveis por quererem atribuir ás Regiões Autónomas mais uns milhões de euros anuais e delimitarem os respectivos valores do endividamento.

No meio de acaloradas discussões na praça pública e na Assembleia da República chegou a constar a possibilidade de demissão do Ministro da Finanças ou até do Governo se a Lei avançasse com os votos conjuntos de toda a oposição. Convenhamos que para um Governo que só repentinamente se transformara num paladino intransigente da defesa das finanças públicas e do não aumento da despesa pública não ficava nada mal na sua função de governação do país que abrisse uma crise política de consequências imprevisíveis, com o país em observação internacional pelos seus credores, a troco dos cinquenta milhões de euros em que a redacção final da Lei se veio a figurar. Este era, aliás, por mais estranho que possa parecer, o mesmo Governo e o mesmo Ministro que no ano anterior tinham autorizado a Madeira a aumentar o seu endividamento em praticamente cento e vinte milhões de euros.

Uma crise e uma teatralização ministerial deste tamanho, vista à lupa no estrangeiro, por causa de cinquenta milhões de euros, num orçamento total do estado que deve ser de praticamente oitenta mil milhões? Isto é responsabilidade e boa governação ou é mera encenação para desviar as culpas dos défices e da dívida pública enormes a que o Governo conduziu o país nestes últimos anos e para passar ao lado dessas importantes questões?

Tratou-se obviamente, disso já agora não pode haver dúvidas, de lançar uma enorme cortina de fumo na tentativa grotesca de fazer associar a oposição política ao desastre das contas públicas que é só agora completamente reconhecido – e isto feito a pretexto de umas meras centésimas do défice projectado para 2010 pelo mesmo Governo e Ministro das Finanças no documento do Orçamento de Estado entregue dias antes no Parlamento.

Ao mesmo tempo que estas cenas se passavam em S. Bento e locais limítrofes, Portugal assistia a quedas vertiginosas da bolsa portuguesa, aos aumentos do custo da dívida pública e dos CDS que cobrem o risco dos investidores internacionais, às afirmações categóricas do FMI sobre a nossa economia e à recomendação do seu economista-chefe Olivier Blanchard (que tão bem conhece a nossa realidade económica) de diminuição dos salários como instrumento de regeneração competitiva (com semelhanças óbvias com as antigas desvalorizações do escudo), e ainda às ímpares afirmações do Comissário Europeu Almunia sobre a comparabilidade da situação portuguesa com a da Grécia.

Dirão os espíritos mais afins da “cantilena da Rosa”, nos dias que vamos vivendo, que tudo isto que desaba sobre Portugal são coisas derivadas da recente aprovação de uma nova Lei das Finanças Regionais, que tem mais uns milhões de euros para a Madeira e Açores em 2010 e limita os seus possíveis níveis de endividamento futuro. Portanto, segundo estas boas opiniões (que são uma ideação muito útil), a situação que os analistas vinham reconhecendo, sobre a qual a triste Dra. Manuela Ferreira Leite falava em Setembro passado na campanha eleitoral e que a levou a dizer ao Engenheiro Sócrates de que o Programa que ele apresentava ao país era impraticável, tudo isso são coisinhas menores. O que agora importa mesmo, como inegociável e inaceitável, são os milhões para a Madeira do Alberto João, esse traste que vive desde há décadas à conta dos cubanos do Continente.

Olhem que não! Lembramo-nos que por exemplo o endividamento externo e a subida vertiginosa da dívida pública nos últimos anos nunca foram verdadeiros problemas da Nação para o “emblema da Rosa”, pois tratava-se, como se dizia aos quatro ventos nos corredores do poder governativo, apenas de colocar em funcionamento mais umas quantas centenas de torres eólicas e o problema do mar de dinheiro que toda a nossa economia pública e privada devia ao estrangeiro desaparecia. E o Senhor Engenheiro não se cansou de repetir esta “reengenharia do endividamento”, de cada vez que o entrevistavam e lhe pediam a douta versão governamental sobre a temática em causa. Tudo isso era de somenos num país moderno e a caminho do progresso e se resolveria, consequentemente, por artes mágicas, claro, porque os magos estavam ao leme da República.

Só que agora o nosso patrono dos grandes investimentos, que são feitos sabe-se lá com que notas (estrangeiras e obtidas nos mercados do dinheiro além fronteiras) e que não contam nada para o endividamento e a dívida segundo os seus defensores pródigos, tem pela frente a realidade das contas do país – desde os mais de 9 por cento do tal défice virtuoso, até aos quase oitenta da dívida pública e aos mais de cem de endividamento. E tem de continuar a dar muitas centenas de milhões para as empresas do Estado, tipo RTP, RDP, Metros de Lisboa e Porto, Carris, CP, REFER, REN, etc., ao mesmo tempo que julga ser capaz de mobilizar os muitos e muitos milhares de milhões para aquelas obras gigantescas.

Só que o caminho para glória começa a ficar cheio de escolhos. Anunciam-se já reavaliações de obras e as empresas começam a ficar com dificuldades em obterem créditos pelos preços anteriores. Cortam-se as verbas para o investimento público inscrito orçamentalmente. O céu que não tinha limites fica agora negro para o nosso prestimoso Governo. O que faz perante esta circunstância o homem do leme – o nosso Engenheiro Sócrates?

Relê longamente Maquiavel, magica com os seus conselheiros íntimos, e aceita os conselhos dados ao Príncipe. E então, a partir daí, o que lhe importa para servir de alçapão e escape e para criar um novo circo de tragicomédia é inventar uma nova manobra de querer esticar as pontas da corda que envolve a nossa garganta. E assim surge nos mentideros comunicacionais, como convém a esta governação sombria, a chantagem dum primeiro-ministro que apenas consegue dar à luz um Orçamento que só reduz despesa praticamente na medida em que congela salários dos funcionários do Estado e alimenta aumentos hipotéticos de receitas extraordinárias de vendas de património e quejandas, e que é incapaz de cortar despesas correntes nos inumeráveis departamentos do Estado.

Será que nos mercados e nas análises internacionais esta manobra de encobrimento dos verdadeiros dilemas do governo não teve efeitos na queda vertiginosa da bolsa e nos prémios adicionais associados à nossa divida? Ou temos de acreditar que todo o mal de Portugal resulta de algo que ainda nem teve qualquer efeito contabilístico – a tal malfadada Lei das Finanças Regionais?

Uma recomendação final para toda esta trama que nos escurece as vidas e o futuro parece que vem aqui a propósito. Talvez se pudesse recomendar que os nossos principais governantes, com o Senhor Engenheiro na primeira fila da plateia, fossem ver o filme “Invictus”, agora nos nossos cinemas, e se inspirassem para se tornarem verdadeiros líderes e estadistas (como se vê que Nelson Mandela foi para a dificílima situação da África do Sul). E não simples “meninos ricos e mal acostumados” que se amofinam e se servem dos piores estratagemas de passar culpas.

E lembremo-nos que está aí à porta a verdadeira prova, o “cálice do Graal”, sobre o que quer e de que é capaz este Governo – a apresentação do “Programa de Estabilidade e Crescimento” para os próximos anos. Aí o Governo tem de dizer efectivamente ao que vem e como vai fazer a sua função durante os vários anos da legislatura, negociando as linhas fundamentais desse Programa com a oposição para lhe dar a imprescindível credibilidade interna e externa. E então já sem cortinas de fumo, à luz da ribalta, se verá sem outros quaisquer subterfúgios e “manobrismos”, se o Governo não nos confrontará antes com um novo acto falhado, novos estratagemas e manobrismos, e dará lugar a novas reacções dos mercados, das agências de “rating” e da própria Comissão Europeia.

Se assim for podemos estar perante mais uma década perdida e um verdadeiro caldo de “Instabilidade e Decréscimo” em vez das tão desejadas “Estabilidade e Crescimento” como pretensamente o Governo titulará o tal Programa, o que só pode querer dizer que o fim dos dias deste Governo e Primeiro-Ministro terá então chegado.

José Pinto Correia, Economista

Sem comentários :