O Dr. Francisco Pinto Balsemão foi ouvido recentemente na Comissão de Ética da Assembleia da República. O seu currículo jornalístico e de proprietário de meios de comunicação social está acima de qualquer prova e tem várias dezenas de anos de conteúdo abonatório, o que conferia enorme nível de credibilidade às suas opiniões e argumentos. Sabe-se em que tipo de processo foi ouvido: o da avaliação da liberdade de expressão em Portugal.
E os meandros do “problema” que se encontra em avaliação parlamentar apontam para as eventuais suspeitas da intervenção do poder político ao mais alto nível na tentativa recente de cercear algumas das reais expressões da referida liberdade de expressão, com impactos relevantes nos meios de comunicação social. E também na possível mentira do Primeiro-Ministro ao Parlamento quando questionado directamente sobre o eventual negócio de compra de parte da TVI pela PT em Junho de 2009, empresa esta na qual o Estado detém poderes especiais de accionista enquanto detentor da denominada “golden share”.
Ora o que fez o Dr. Balsemão de diferente do habitual naquela audição na Comissão de Ética?
Iniciou a sua intervenção com um percurso detalhado em torno de dois possíveis cenários, alternativos e igualmente prováveis, que envolveriam todo o dito “problema” em avaliação pela Comissão. Em qualquer daqueles cenários existia uma estrutura base com dez variáveis, facilmente confirmáveis e de muito óbvia relevância e que corresponderiam a muitos dos eventos/factos conhecidos desde há pelo menos três anos. Nestas variáveis estavam as várias leis restritivas da auto-regulação da imprensa e media, o negócio PT-TVI, as operações da empresa Ongoing, a venda da Media Capital ao grupo PRISA, o 5º Canal de Televisão, a Televisão Digital Terrestre, os poderes da ERC, as relações BCP-SOL, nomeadamente.
Num primeiro cenário tudo se conjugaria para uma orquestração política integralmente conseguida, correspondente à vontade dos seus agentes determinantes – a saber membros do actual Governo e seus aliados estratégicos. Seria o cenário “Bingo”, ao qual corresponderia uma consumada manipulação da liberdade de imprensa e também a prazo da própria expressão livre. Num segundo cenário tudo correria mal na consecução das linhas de orientação das diferentes variáveis, por manifesta incompetência dos “actores em campo”, e não se consumaria estratégia definida ao mais alto nível político. Este seria o cenário do “Acaso/Incompetência”.
Os cenários são sempre, por definição própria, narrativas fortíssimas de possíveis realidades, mais habitualmente das que definirão o futuro ou futuros possíveis, tentam reduzir as indeterminações e o inesperado ao campo de probabilidades aceitáveis, dirigem o pensamento reflectido e racional, e apontam eventos, padrões, variáveis, estruturas, comportamentos de actores, relações de força explicativa. Os cenários, em regra, explicam ou procuram antecipar o que pode acontecer no futuro e possibilitam a preparação e o enquadramento para as estratégias a prosseguir por todo o tipo de organizações e actores, incluindo os próprios Governos e Estados nacionais.
Mas no caso do Dr. Balsemão na Assembleia da República eles procuraram estabelecer o modelo interpretativo polarizado entre dois “jogos possíveis” do problema que ali está em avaliação. E os dois cenários alternativos expostos, à partida igualmente possíveis, do que pode ter acontecido no domínio da comunicação social e dos “media” em Portugal nos últimos anos por acção política directa e indirecta do Governo, tiveram uma força interpretativa enorme, vindos de uma fonte com insofismável credibilidade sobre os diferentes contornos empresariais e políticos do tema em questão.
Evidentemente que a força interpretativa da realidade que é conferida aos cenários vem da verosimilhança dos seus factos, variáveis, padrões, e da credibilidade da estrutura modelar em que se baseiam. E neste particular aspecto o Dr. Balsemão assentou os seus dois cenários extremos em elementos constituintes e justificativos extremamente poderosos e validados pela própria realidade observada no período temporal relativamente longo a que os cenários respondiam.
Há ainda sobremaneira neste exercício inteligente e elevadamente lógico do Dr. Balsemão uma força adicional de encerramento explicativo dos seus cenários que é o facto de eles serem apresentados contrariamente ao habitual não para explicarem o futuro, mas neste caso os últimos anos de um passado recente, do qual todos os que ouviam aquela dissertação reconheciam muito facilmente todos os seus fundamentos estruturais. E era o poder desta narrativa de uma realidade que todos reconheciam que auto-validava imediatamente muitas das variáveis, acontecimentos, padrões, comportamentos de actores, que constituíam a estrutura dos próprios cenários.
E foi por isso que esta inovação explicativa de uma complexa e disputadíssima realidade, que constitui o problema da liberdade de expressão em avaliação pela Comissão de Ética, permitiu conformar todas essas possíveis divergências interpretativas a uma configuração narrativa criada magistralmente através dos cenários.
Nos cenários apresentados, o Dr. Balsemão apresentou os dois pólos extremos e contraditórios, mas entre um e o outro dos cenários o próprio não deixou de destacar com conhecimento próprio de interventor privilegiado qual deles lhe parecia mais verosímil para explicar a realidade hoje conhecida – esse seria o do cenário “Bingo”, sobre o qual teceu demoradas considerações em abono da veracidade de algumas das suas principais variáveis de estrutura.
Evidente foi também o facto de não ter existido praticamente contraditório sobre o fundamental deste exercício entre a assistência dos deputados da Comissão de Ética. Isso só revelou, uma vez mais, a força interpretativa e racional dos cenários, que surpreenderam os circunstantes quer pelo seu inesperado, quer também, indiscutivelmente, pela sua potencialidade narrativa.
O Dr. Balsemão deu, assim mesmo, na Assembleia da República um exemplo magistral da força dos cenários enquanto instrumentos de interpretação e explicação da realidade possível e/ou provável, seja a do passado seja, como é mais corrente no uso dos cenários, a do futuro.
Em Portugal os exercícios de antecipação do futuro com base em cenários possíveis, para permitir determinar as estratégias nacionais, organizacionais ou pessoais são muito escassas. O que deixa muito do “jogo da vida” nacional, das organizações e das pessoas entregue a uma inevitável aceitação das estratégias, vontades, acções e comportamentos alheios.
O Dr. Balsemão fez no Parlamento, perante o País e alguns dos seus deputados, uma demonstração inequívoca e cabal do poder dos cenários, da sua real potencialidade de fundamentação estratégica das instituições e dos actores políticos e outros, ou também enquanto indispensáveis instrumentos de compreensão da realidade passada ou futura.
Nota de Interesse Absoluto: Ao assistir a este exercício do Dr. Balsemão reforcei a minha convicção que a verdade deixou de ter em Portugal um valor intrínseco inigualável como meio de servir a política na concretização dos interesses superiores de uma Nação. A verdade, hoje em muitos corredores do nosso poder político, e do Governo em primeira instância, é uma das muitas hipóteses de discorrer sobre os factos e a realidade – é completamente relativa em vez de ser um valor absoluto de exercício do poder. A verdade é assim considerada por muitos dos principais intérpretes da vida política como completamente relativa, tendo variáveis matizes ao gosto e arbítrio dos detentores dos cargos políticos governamentais e outros. Ora, isso degrada enormemente a confiança e a percepção de legitimidade dos governados naqueles que foram eleitos em seu nome para conduzirem com integridade a coisa pública que a todos os portugueses pertence por direito inalienável.
José Pinto Correia, Economista
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