O Estado português actua desde as nacionalizações de 1975, com a necessária guarida constitucional, como proprietário e accionista de muitas empresas nacionais, quer sejam completamente públicas, onde por natureza da produção ou dos serviços a propriedade e o papel do Estado pode ser aceitável e/ou indispensável, quer em empresas maioritariamente privadas de sectores económicos concorrenciais, onde esse mesmo papel e a função de empresário e accionista privilegiado é bastante discutível ou mesmo inaceitável.
A longa tradição das doutrinas socialistas, desde as mais radicais comunistas até às de raiz mais democrática de cariz e denominação social-democrata, entendem que o Estado deve assumir um papel determinante na economia nacional e em empresas de vários sectores, com especial relevância para os dos chamados bens de utilidade geral (água, energe outros), dos monopólios naturais, ou dos também considerados como estratégicos à luz das interpretações doutrinárias em apreço.
É também hoje certo e relativamente consensual em muitos quadrantes políticos que defendem a denominada economia (social) de mercado que muitas empresas que foram consideradas como sendo de sectores estratégicos deixaram entretanto ao longo dos anos das últimas décadas de o serem; e isto porque o capitalismo global e as dinâmicas de mercado e concorrência nacional e internacional que nele se definiram mais recentemente determinaram que o Estado abandonasse a intervenção que mantinha nalgumas dessas empresas industriais e de serviços.
Todavia, em Portugal o Estado continua ainda neste momento, e desde o processo de nacionalizações de Março de 1975, presente em inúmeras empresas de vários sectores industriais ou de serviços, e mantém nalgumas a qualidade de accionista especial garantindo direitos de intervenção gestionária estratégica através das denominadas “golden shares”. E este seu carácter de accionista importante permite-lhe condicionar a estratégia de desenvolvimento dos negócios das empresas e ainda indicar membros em sua representação para fazerem parte das próprias administrações dessas empresas.
Este papel intervencionista do Estado nas empresas que são maioritariamente privadas e que actuam em sectores abertos à concorrência e aos lucros de mercado coloca, desde logo, algumas questões importantes, a saber:
Quem e como se definem os interesses relevantes do Estado nessas empresas?
Qual o papel intermediário do interesse geral que os administradores designados pelo Estado devem assumir? E como deve ser assumido esse papel de intérprete do designado interesse geral que o Estado deve prosseguir?
Quais os critérios que orientam e definem as posições do Estado nos negócios dessas empresas? Que tipo de decisões estratégicas devem ser impedidas ou contrariadas pelo Estado?
Que tipo de remunerações devem ter os representantes do Estado naquelas empresas? Devem os administradores indicados pelo Estado ser remunerados e premiados de modo igual aos dos administradores que representam os interesses dos accionistas privados?
As respostas claras e detalhadas a estas questões permitem ajuizar com alguma transparência e profundidade o real e verdadeiro papel que o Estado desempenha ou quer desempenhar na propriedade e influência da condução gestionária das empresas onde é accionista ainda hoje. E também de que modo e porque razões económicas, sociais ou políticas se defende a intervenção determinante desse Estado nas empresas, dando-lhe um papel de empresário e de influente actor na vida económica nacional.
Claro que não se pode esquecer que em Portugal o Estado tem tendido a ser ocupado e apropriado partidariamente pelas forças políticas que detêm a maioria eleitoral que apoia e baseia o Governo em funções. E assim, desde que existem as empresas onde o Estado detém poderes de proprietário exclusivo ou de accionista privilegiado, se tem assistido a numerosas nomeações de gestores em sua representação que obedecem a critérios meramente políticos e partidários e se destinam menos a salvaguardar e sustentar o interesse geral do que a assegurar a lealdade política e partidária.
Confundem-se, deste modo, muitas vezes os interesses públicos de todos os portugueses que o Estado deveria representar e garantir com aqueles mais específicos e parciais que defendem e integram os dos políticos em exercício do poder governativo.
De facto, nestas circunstâncias que são genéricas é impossível argumentar que os representantes do Estado nas empresas representam o tal interesse geral ou público, que nunca é clarificado e objectivamente definido. Pelo contrário, aqueles representantes do Estado tendem a assumir e patrocinar interesses particulares definidos ou a benefício dos políticos em funções e que governam à época. O que invalida a própria noção de interesse geral ou de interesse público, como sendo conceptualmente aqueles que resultariam na maior utilidade, benefício ou vantagem da comunidade de representados, os cidadãos nacionais.
Cai por terra, deste modo, a natureza do conceito do interesse geral ou público e a própria justificação de que o Estado é o seu patrocinador enquanto empresário ou accionista privilegiado. E também que esse interesse da comunidade nacional é escrupulosa e inequivocamente realizado por intermédio dos seus representantes nomeados para as administrações das referidas empresas públicas ou privadas.
Podem assim, e na decorrência desta linha de argumentação, levantar-se mais as seguintes interrogações:
Como pode então defender-se que o Estado aceite que um administrador por si indicado seja retribuído da mesma forma que aqueles outros administradores que representam os interesses dos accionistas privados?
Deve o Estado impor que os seus representantes nas administrações tenham um determinado nível de remuneração limitado por exigências de equidade e justiça relativa mais rigorosos que os dos restantes administradores?
E nas empresas onde o Estado é o único accionista quais devem ser os critérios e os limites das remunerações dos respectivos administradores?
Há quem apareça hoje em Portugal, neste contexto de crise económica fortíssima em que vão ser impostos sacrifícios extraordinários a uma larga maioria de trabalhadores de baixos e médios rendimentos, a defender que, por exemplo, um jovem administrador da PT nomeado em representação do accionista Estado (que detém na empresa apenas a “golden share”) pode e deve receber, para além do seu ordenado anual, também um prémio/bónus anual de mais de um milhão de euros. Ou que na REN, empresa maioritariamente pública e monopolista absoluta, os administradores podem também receber prémios anuais de muitos milhares de euros e correspondentes a vários meses de salários mensais (sejam doze ou seis, é indiferente como veremos seguidamente).
E ainda se argumenta também em abono desta posição que tais prémios seriam inequivocamente justificados porque, no decurso da sua actividade e funções, os referidos administradores alcançaram ou entregaram os resultados (como agora é mais eufemísticamente vulgar dizer-se) que as suas tutelas administrativas (no caso as respectivas comissões executiva da empresa) lhes pediram. E estes administradores, diz-se também, dado os circunstancialismos que envolvem o caso particular em concreto, nem são acusado de nenhum crime, portanto podem e devem receber tudo quanto a administração da PT e da REN lhes quiserem atribuir como prémio pela sua qualidade e mérito.
Só que existe aqui, e apesar do mais, um pormenor que faz toda uma diferença interpretativa para este contexto remuneratório dos prémios.
Como diz a “teoria económica e gestionária da agência”, na grande maioria das situações das empresas privadas cotadas em bolsa são os agentes, isto é mais especificamente, as administrações nomeadas pelos accionistas que, com a sua autonomia ampla concedida por estes últimos em assembleia-geral e estabelecida formalmente nos modelos de governança específicos, decidem em grande parte o nível das suas remunerações e estabelecem os critérios e avaliam os resultados que conduzem à possibilidade de atribuição dos respectivos prémios de gestão. E também se sabe pela experiência que estes prémios se tornam praticamente garantidos para qualquer tipo de desempenho e na grande maioria dos casos recentes se limitam a acompanhar os resultados de curto-prazo em detrimento da segurança da rendibilidade e competitividade das empresas no médio e longo prazos.
Há, assim, na gestão moderna das grandes empresas privadas com milhares de accionistas que não participam na gestão corrente dessas empresas uma apropriação remuneratória muitas vezes indevida e injustificada do valor dos accionistas por parte dos seus agentes administradores/gestores. E também uma patente contradição entre a garantia de sobrevivência competitiva dessas empresas e a visão de prazo curto associada à atribuição dos prémios aos administradores.
E será assim justo defender que quando é o Estado um dos accionistas com privilégios especiais de intervenção na gestão dessas empresas (nomeadamente através das “golden shares”) será adequado que este ente representante dos contribuintes e consumidores nacionais fique impávido e indiferente à atribuição de prémios milionários aos administradores da empresa, e ainda por mais aos administradores que ele próprio enquanto Estado indicou e que na sua qualidade de representante do interesse dos contribuintes tem inquestionavelmente de defender?
Lembremos agora a este propósito que foram os próprios governantes actualmente no poder em Portugal que mais vivamente levantaram a sua voz e crítica severa e que acusaram os desvios neoliberais do sistema financeiro capitalista e dos faustosos rendimentos e remunerações obscenas dos respectivos gestores como sendo, então, um dos principais fundamentos para a gravíssima crise financeira e económica que o Mundo vem a viver. E que também disseram, no que foram largamente acompanhados por muitos dos representantes das doutrinas socialistas menos ou mais radicais, que o modelo económico e de governança empresarial tinha de mudar radicalmente. No que foram liderados pelo actual Presidente dos EUA e, entre nós, devidamente secundados por praticamente todos os quadrantes partidários com o actual Primeiro-Ministro e o Ministro das Finanças como arautos indiscutíveis.
O Estado como se sabe, em Portugal, nas empresas onde mantém as “golden shares” não é, não pode ser considerado, como apenas mais um dos accionistas. Ele é e sempre foi um accionista determinante da política e estratégia dessas empresas. Se assim não fosse não se compreenderia o facto de nunca ter aberto mão do seu papel de accionista privilegiado através da detenção dos poderes especiais que as suas “acções douradas” ainda lhe conferem.
Por isso mesmo, o Estado deve ser exemplar nos momentos mais delicados, para poder ter a legitimidade para pedir ou impor sacrifícios à maioria dos cidadãos. E assim não pode inevitavelmente transigir com a iniquidade que traduz a atribuição de prémios milionários aos administradores das suas empresas públicas ou daquelas onde participa na qualidade de accionista ímpar.
Trata-se de uma prova de justeza de posições e da reafirmação de uma confiança de que o Estado está ao serviço dos interesses maiores da Nação – os quais apenas podem ser indiscutivelmente defendidos com a afirmação de valores e princípios de justiça relativa que possam ser maioritariamente aceites pelos cidadãos e eleitores.
O Estado dará assim prova com essa afirmação dos princípios e valores da sobriedade, da parcimónia e do equilíbrio retributivo de que se pauta por uma ética que estará patente na sua acção perante todos, sendo assumida com carácter de intransigência pelos governantes responsáveis. Uma ética formatada por princípios e valores em que a transparência e a legitimidade da posição do Estado sejam facilmente percebidas e entendidas.
Nesta como em muitas outras questões importantes para a qualidade da democracia e a afirmação da bondade do regime político, o Estado português deve, pois, dar um exemplo de nobreza e de rigor que o diferencie, na situação de crise gravíssima que o País atravessará nos próximos anos, das situações de relativismo dos valores e falta de ética que tão insistentemente foram atribuídas aos muitos gestores irresponsáveis do sistema financeiro americano e ocidental, os quais conduziram o mundo para a maior crise financeira e económica dos últimos setenta anos.
José Pinto Correia, Economista
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