terça-feira, 27 de julho de 2010

Portugal, Europa e o Mundo no Século XXI

Durante os últimos cinquenta anos do século vinte o Mundo assistiu a uma evolução constante e profunda em muitos domínios. Foi a grande mudança das tecnologias, entre as quais as da comunicação e informação e as da medicina, como a ascensão de muitos países a regimes políticos democráticos.

Lembremo-nos que o Muro de Berlim, que dividia o leste do ocidente ruiu em 1989, dando-se desde então início a uma era em que deixaram de existir os dois blocos de poder rivais. Estava findado um período de mais de quarenta anos, desde o fim da segunda guerra mundial em que se defrontaram duas concepções antagónicas de organização política, social e económica do Mundo – o capitalismo democrático e liberal do ocidente liderado pelos Estados Unidos da América contra o comunismo colectivista e de democracia popular do leste comandado pela União Soviética.

Neste período de meio século, o Mundo tinha-se quase unificado por um renovado processo que agora se denomina de globalização competitiva. Todos os países e lugares da Terra passaram a ser interdependentes, porque as tecnologias da comunicação e da informação, dos transportes terrestres e aéreos, as produções das grandes empresas e o seu poder económico global, os computadores e as suas potencialidades sem fim, reduziram as distâncias entre os lugares e as pessoas e ligaram-nas numa verdadeira “cadeia universal”. Morreu a distância, fluidificaram-se as fronteiras nacionais, reconfiguraram-se os espaços regionais, nacionais e locais, apertou-se o tempo, mudaram-se as rotinas e os instrumentos pessoais.

Os países ficaram deste modo menos isolados sobre si-próprios e tenderam a estabelecer relações de mais íntima cooperação geográfica e interdependência. Nasceram as modernas organizações supra-nacionais que agrupam países em áreas continentais, de modo a facilitarem as respectivas relações económicas, sociais, culturais e políticas.

O exemplo mais avançado desta congregação de interesses e vontades entre países é a agora denominada União Europeia (que anteriormente se denominara de Comunidade Económica Europeia e de Comunidade Europeia). Nesta União existe já hoje um elevado grau de integração económica e uma colaboração e cooperação política também assinalável que tem permitido à Europa viver um dos seus mais longos períodos de paz e crescimento económico. A União Europeia (UE) já hoje inclui 27 estados membros e constitui o maior espaço económico e comercial do Mundo, dotada recentemente de um novo quadro institucional que foi projectado para os novos desafios que a construção europeia parecia determinar.

Todavia, em 2001 com o atentado às Torres Gémeas de Nova Iorque houve uma alteração radical na forma de ver e governar o Mundo. Este atentado, perpetrado pela organização terrorista global Al-Qaeda, de inspiração islâmica fundamentalista, veio desestabilizar o equilíbrio que se tinha vindo a criar a nível global depois da queda do Muro de Berlim. Há um Mundo antes e outro depois do onze de Setembro, no qual a forma de organização da vida ocidental está colocada em risco pela determinação fanática deste novo tipo de extremismo de inspiração religiosa.

O terrorismo global de inspiração islâmica é hoje uma ameaça séria ao regular e pacífico viver do denominado “Mundo Ocidental” e também a muitos dos países árabes e muçulmanos onde imperam regimes de cariz não fundamentalista que têm mantido nas últimas décadas maiores níveis de intimidade com o Ocidente. Provavelmente neste Mundo pós guerra-fria vai permanecer durante muitos anos uma nova guerra latente e insidiosa que alguém já chamou de “Guerra das Civilizações”, na qual a inspiração religiosa fundamentalista e bárbara de um islão deturpado nos seus fundamentos teológicos vai perturbar a salutar convivência entre povos, que todos pareciam desejar e o Mundo mais justo e próspero mereceria.

Neste novo enquadramento internacional em que têm vindo a emergir novos centros de poder económico e geopolítico, com destaque para a China, a Índia ou o Brasil, a situação relativa da Europa apresenta desde há praticamente uma década um conjunto identificável de fragilidades estruturais flagrantes. Desde logo em matéria demográfica o continente europeu está em franco declínio, com fracas taxas de natalidade e franco grau de envelhecimento médio da respectiva população. O que, aliado a taxas médias de crescimento económico muito inferiores às das dos decénios mais auspiciosos do século vinte, coloca enormes constrangimentos ao desenvolvimento económico, à coesão social e à capacidade de sobrevivência dos actuais modelos de estado social criados nesses ambientes anteriores de grande crescimento económico e populacional.

O continente europeu está, portanto, em franco declínio de afirmação de poder económico, social e político à escala global. Já hoje é possível prefigurar a deslocação da supremacia da importância económica para o continente asiático e o oceano pacífico, a par da importância tradicional dos EUA que mantém a sua situação privilegiada nesse mesmo oceano, e com perda altamente provável da relevância secular da Europa que se manifestou ininterruptamente ao longo dos últimos três séculos (desde a denominada revolução industrial).

Acresce também que a Europa perdeu capacidade de afirmação militar por ter dedicado á sua defesa militar um muito menor esforço relativo do que os EUA com quem manteve a sua ligação primordial no âmbito da NATO, o que hoje impede que esta mesma Europa seja tida na devida consideração quanto à resolução de conflitos que se passam em áreas geográficas que lhe são próximas e nas quais teria óbvios interesses geopolíticos e geoestratégicos. Um exemplo claríssimo desta fraqueza europeia diz respeito ao conflito do médio oriente, no qual estão em causa interesses relevantes para a Europa e o seu papel é reduzido praticamente a uma mera intermediação financeira das parcelas palestinianas afectadas pelo conflito em presença.

As forças principais que definirão a balança de poderes mundiais nas próximas décadas deste novo milénio jogam, nestas condições, francamente em detrimento da Europa, que terá de encontrar estratégias próprias de reposicionamento e de reconfiguração dos seus potenciais, sob pena de vir a tornar-se, como muitos analistas insuspeitos já hoje afirmam, um continente despiciendo no jogo mundial de poderes geopolítico e geoestratégico deste século vinte e um.

Conhece-se a grave crise económica e financeira em que o mundo ocidental está mergulhado presentemente. A Europa tem tido uma enorme dificuldade em traçar uma estratégia consequente de afrontamento da sua situação débil, a qual é muito afectada pelos enormes défices e dívidas públicas de muitos dos seus países, mas também pela patenteada ausência de uma vontade única e coerente de definir uma estratégia económica e política de médio prazo capaz de enfrentar a gravíssima crise que afecta toda a União Europeia.

Mas por isso mesmo há um enorme desafio aos líderes europeus para toda esta segunda década do século vinte e um. O qual se traduz na imprescindibilidade de esses líderes encontrarem concertadamente um caminho de crescimento económico visível garantindo uma melhor estrutura das respectivas contas públicas dos estados nacionais e, ao mesmo tempo, a projecção de uma nova capacidade de afirmação do continente no concerto mundial.

Mas este desafio ímpar para a Europa só se fará, por um lado, com a indispensável negociação multilateral das regras da globalização competitiva num horizonte temporal alargado (duas décadas, pelo menos) que possa salvaguardar um crescimento económico significativo e a correspondente capacidade de defender os adquiridos de direitos sociais conquistados ao longo de várias décadas pelos europeus, e, por outro lado, com a reafirmação de uma parceria estratégica de carácter transatlântico com os EUA que possibilite a defesa da economia de mercado e a junção de valores de democracia e de respeito pelos direitos humanos nos diferentes espaços do mundo.

Portugal tem a sua afirmação nacional ligada simultaneamente à Europa e aos espaços da lusofonia, que estão na África e no Brasil e em outros países da América Latina. Está, assim, e por consequência, muito interessado nesta evolução do potencial da Europa no mundo globalizado. Mas pela sua vocação histórica atlântica que manteve a sua afirmação identitária ao longo de séculos deve, por isso mesmo, fazer da sua estratégia de desenvolvimento para as próximas décadas deste século uma síntese dinâmica dos potenciais de benefícios económicos, políticos e geoestratégicos que resultarão desta “trilateralização de política externa” com os vértices da Europa, da África e do Brasil e América Latina.

Só apostando equilibrada e consequentemente nestas diversas frentes geográficas, Europa, África, Brasil e América Latina, Portugal poderá escapar a uma desvalorização da sua individualidade histórica e nacional, que resultaria de se circunscrever exclusivamente a qualquer um desses três vértices da nossa estratégia para as próximas décadas deste novo milénio. Um período extremamente exigente e que se desenha, tal como acima referenciámos, como tendo os contornos de um nítido prejuízo geoestratégico e geopolítico para a Europa no âmbito do concerto das regiões mundiais.

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 20 de julho de 2010

Alguns Dilemas de 2010 (ou “a pesada herança socialista”) Parte II


Portugal está preso num labirinto perigoso do qual ninguém sabe exactamente como sair, e não se podem nem desconhecer nem muito menos iludir as responsabilidades políticas que criaram e mantiveram com manipulações grosseiras esta vizinhança do abismo. Sendo certo que as novas gerações, as dos jovens de hoje e de amanhã, herdarão um pesado fardo, aquilo que se pode apropriadamente denominar “a pesada herança socialista”.

Esta enorme herança traduz-se, para além dos já enunciados na primeira parte deste artigo, em mais os seguintes dilemas que caracterizam a situação a que Portugal chegou em 2010:

5. A Educação Pública (ou “o sistema educativo”)
Portugal faz hoje um esforço financeiro, humano e infra-estrutural enorme na educação pública. O nível financeiro está mesmo situado em níveis percentuais do produto interno bruto semelhantes aos mais elevados dos países que compõem a União Europeia ou a OCDE. Mas os resultados académicos dos estudantes portugueses são francamente insuficientes, o que tem sido constatado nas avaliações internacionais comparativas a que o nosso sistema educativo tem sido exposto (os conhecidos estudos PISA), ou mesmo referenciado por muitos docentes do ensino secundário ou superior que avaliam bem mal o nível de conhecimentos médios dos estudantes (ainda agora uma vez mais confirmados também pelos resultados francamente negativos dos exames nacionais do ensino básico e secundário de 2010 em várias disciplinas fundamentais dos respectivos currículos). Fala-se hoje cada vez mais insistentemente nas responsabilidades que para esta flagrante mediania/mediocridade educativa portuguesa têm as denominadas pedagogias românticas e facilitistas que invadiram o Ministério da Educação há décadas – o conhecido hoje já sem meios-termos pela designação comum de “eduquês”. Por outro lado, este Ministério da Educação português é uma máquina gigantesca que interfere em quase todos os aspectos e factores de organização da vida escolar, num dirigismo inconcebível que está completamente fora de tempo e que tolhe a capacidade de afirmação de um regime de liberdade e responsabilidade que as escolas, os professores e os pais deveriam ter na organização da vida escolar e nos próprios projectos pedagógicos dos estudantes. Depois, em consequência deste centralismo e absolutismo dirigista do Ministério há uma correspondente máquina sindical igualmente dirigista e centralista que impõe permanentes negociações de estatuto docente e matérias relacionadas, as quais praticamente impossibilitam que sejam pensadas e implementadas pelos sucessivos governos políticas educativas flexíveis e conducentes a alcançarem as melhorias de resultados escolares que os portugueses mereciam e o regime democrático de um país europeu exigiria. Este tem sido o sistema de governação do ensino que conduziu a gastos enormes e a resultados escolares permanentemente medíocres, e onde imperam os gigantismo e dirigismo das estruturas ministerial e sindical que têm sido completamente incapazes de transformarem um estado de coisas inaceitável do ponto de vista do interesse público dos pais e estudantes do Portugal democrático. Porque os portugueses, cidadãos e contribuintes, mereciam um muito melhor sistema público de ensino para os seus filhos e netos, e não o tendo o país vai continuar a condenar as novas gerações de filhos dos portugueses mais desfavorecidos que não têm alternativas educativas a serem no futuro as novas gerações de trabalhadores mal remunerados e sem capacidade de ascensão social.

6. A Pobreza e o Estado Social (as novas políticas sociais)
Portugal chegou a 2010, trinta e seis anos depois de Abril de 1974, com mais de dois milhões de pobres. Muitos destes pobres foram trabalhadores uma vida inteira e hoje recebem as reformas insuficientes que se conhecem – de duzentos ou trezentos euros mensais. Mas também há muitos outros portugueses, muitos milhares mesmo, que recebem praticamente o mesmo tipo de rendimentos mensais sem nunca terem trabalhado arduamente, sem saberem o que é cumprir horários de trabalho, as ordens de patrões, terem de encolher as despesas dia a dia para pagarem as rendas de casa ou para darem estudos aos filhos para quem querem um futuro melhor que o seu. Os apoios sociais tornaram-se, por isso, em muitos casos indesejavelmente injustos e iníquos, contribuindo para alimentar os contravalores da falta de ambição e luta pelo trabalho digno e valioso de muitos milhares de portugueses. Por isso, os recursos escassos que o país vai ter nos anos futuros, numa economia em perda de capacidade de crescimento, têm de ser dirigidos com extrema eficácia e efectivamente para as pessoas que deles têm absoluta carência para viverem dignamente, se tiverem idades que já não lhes permitam trabalhar, se ficaram temporariamente impossibilitadas de proverem ao seu sustento e vida digna, ou se forem portadoras de graus de deficiência e invalidez que os inibam de ter uma vida activa e autónoma. Mas a justiça destes apoios sociais implicará também, e ao mesmo tempo, para todos aqueles a quem os apoios forem concedidos com carácter transitório que a todos seja exigido num determinado prazo a frequência de acções de formação e de envolvimento profissionalizante que lhes aumentem as suas competências profissionais de modo a facilitar-lhes que retomem com a brevidade possível a sua vida de trabalho e de tentativa de auto-sustentação pessoal e familiar. Estas políticas de apoio social mais exigentes e moralmente selectivas têm pois de contribuir para melhorar efectivamente a situação de vida dos que continuariam pobres sem esses apoios e que não terão autonomia para por si gerarem o seu sustento digno, mas também, por outro lado, estas políticas pela sua maior selectividade e rigor devem contribuir para aliviar os encargos com aqueles a quem pode ou deve ser exigido que iniciem ou retomem uma vida de trabalho capaz de prover ao seu sustento digno. Essas serão as novas políticas sociais que a justiça efectiva para com a pobreza inultrapassável de muitos portugueses exige que Portugal ponha em acção no futuro próximo.

7. O Contrato Democrático Intergeracional
A situação económica, financeira e social em que Portugal se encontra em 2010 limita fortemente as possibilidades e as expectativas de bem-estar e qualidade de vida das jovens gerações que se sabe serem genericamente mais qualificadas que as anteriores. A vida dos jovens que hoje acabam os seus cursos secundários ou superiores está extraordinariamente dificultada desde logo no acesso ao primeiro emprego – onde as taxas de desemprego são praticamente o dobro da taxa geral do país (acima dos 20 por cento, por conseguinte). É também facilmente perceptível que as leis do trabalho que dificultam a contratação de jovens, as recentes alterações do regime de pensões que diminuem enormemente as retribuições desses regimes para as novas gerações, ou mesmo a maior dificuldade do acesso ao crédito para habitação própria dos jovens e a provável ascensão das taxas de juro no futuro, todos estes aspectos relevantes da vida pessoal e familiar estão conformados já hoje e ainda se agravarão potencialmente mais nos anos futuros de modo a preterir as camadas jovens da população portuguesa. Portugal está também a deixar para essas novas gerações, fruto de várias de decisões políticas que têm vindo a ser tomadas nos últimos dez anos, um conjunto enormíssimo de encargos que tornarão as vidas profissionais dessas novas gerações provavelmente ainda muito mais sobrecarregadas com impostos. Basta a este respeito ver as previsões de encargos para depois de 2014 das denominadas parcerias público-privadas já realizadas e das que ainda agora, e significando muitos milhares de milhões de euros, se anunciam com as novas infra-estruturas rodoviárias e ferroviárias de alta-velocidade. É tempo de as gerações mais velhas que hoje decidem os destinos do país pensarem em termos intergeracionais e reduzirem as dificuldades de acesso ao emprego ou apoiarem os novos projectos empresariais de jovens, e assumirem as responsabilidades devidas e transparentemente pelos encargos que transmitem para serem pagos por novos impostos por essas próximas gerações. Porque estas provavelmente não perdoarão que essa contabilidade estrita e rigorosa não seja feita e assumida pelos mais velhos que actualmente detém as rédeas do poder político e económico em Portugal e que não podem nem considerar-se nem intitular-se como donos de Portugal. E porque também não são nem justa nem moralmente aceitáveis que os governantes ao mais alto nível de hoje usem no espaço público os argumentos impróprios e irresponsáveis de que é necessário deixar às próximas gerações tudo aquilo que ainda não existe e que esses detentores do poder de hoje acham que deve ser feito. As gerações que hoje governam não têm o direito de condicionar ou mesmo capturar de uma forma tão esmagadora o futuro das futuras gerações que devem ter o espaço de liberdade para afirmarem com pleno vigor as suas escolhas e os seus projectos de organização da vida social, económica e política do Portugal de amanhã. A contabilidade intergeracional, que a equidade e justiça entre as gerações impõe que agora seja feita, exige aos decisores de hoje o rigor ético de não se constituírem nos captores do futuro dos jovens de agora que lhes vão suceder. Essa exigência ética é inerente e intrínseca à capacidade de as novas gerações terem a efectiva liberdade de decidirem as suas vidas e construírem o Portugal do futuro.

Nota de Leitura Compreensiva da “Política da Mentira Política”: “Saber e não saber, ter uma noção de absoluta veracidade enquanto se dizem mentiras cuidadosamente elaboradas, defender simultaneamente duas opiniões que se anulam reciprocamente, sabendo-as contraditórias e acreditando em ambas, usar a lógica contra a lógica, repudiar a moral ao mesmo tempo que se reclama a moral, acreditar na inviabilidade da democracia e que o Partido é o guardião da democracia, esquecer o que quer que fosse necessário esquecer, para depois o trazer de volta à memória quando necessário, e em seguida de novo esquecê-lo prontamente…” (citado de “1984”, George Orwell, Editora Antígona).

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 13 de julho de 2010

Alguns Dilemas de 2010 (ou “a pesada herança socialista”) Parte I

Portugal está preso num labirinto perigoso do qual ninguém sabe exactamente como sair, e não se podem nem desconhecer nem muito menos iludir as responsabilidades políticas que criaram e mantiveram com manipulações grosseiras esta vizinhança do abismo. Pressentem-se e avizinham-se as rupturas financeiras e sociais, as quebras de coesão nacional e um futuro completamente incerto para todas as gerações. Sendo certo que as novas gerações, as dos jovens de hoje e de amanhã, herdarão um pesado fardo, aquilo que se pode apropriadamente denominar “a pesada herança socialista”, para o qual não contribuíram em nada.

Vejamos agora alguns dos principais dilemas que caracterizam a situação a que Portugal chegou em 2010:

1. O Problema dos Valores
A sociedade portuguesa tem hoje uma perda de guias de orientação e de princípios e regras que pautem os comportamentos e condutas dos seus cidadãos. Desde os mais elevados cargos políticos até às inúmeras situações que se vislumbram nas escolas, nos tribunais, nos hospitais, nas estradas, nos empregos e nas empresas, deixou de existir um conjunto de valores que conduzam digna e honradamente a forma como as pessoas actuam e definem as suas vidas. Os valores, que são esses tais preceitos condutores das vidas humanas no contexto de uma comunidade nacional perderam significado e prevalência e foram reduzidos por uma narrativa pós-modernista em que tudo é relativo, vale o mesmo, é fruto de opinião e desvalorizável no seu significado social. Por isso é que hoje em Portugal falta o rigor, a transparência, a humildade, a responsabilidade individual, a assunção dos deveres, o valor da palavra dada, o sacrifício no trabalho e no estudo, o sentido da proporcionalidade nos ganhos monetários, a defesa e a afirmação permanente da autoridade legítima, o respeito pelos mais velhos, a atribuição do valor insubstituível da experiência e da sabedoria, a perfeição no trabalho individual, o sentido de comunidade, a frugalidade e a decência nos gastos públicos e privados e nas relações com os outros, e ainda um completo desvalor para com o dinheiro. Tudo isto se transmite dos líderes políticos e institucionais, nos media quase instantânea e continuamente, passa aos chefes, aos subordinados e ao povo em geral e sobretudo, o que ainda é mais nocivo, às novas gerações de jovens que farão o Portugal de amanhã. Há assim uma degenerescência cultural e social de Portugal que está patentemente expressa nos contra-valores que hoje permeiam pela comunidade nacional.

2. As Personalidades Políticas (ou a ética na política)
Todos sentimos que tem vindo a deteriorar-se o sentido da ética e o respeito pela verdade na política. A maioria dos políticos, começando pelo Governo e pelo exemplo categórico que é o do próprio Primeiro-Ministro em funções, têm hoje um muito menor respeito e escrúpulo relativamente aos princípios do que é o bom e o mau, o justo e o injusto, o certo e o errado, o verdadeiro e o falso, quando fazem as suas escolhas ou tomam ou rejeitam tomar as decisões políticas que envolvem a comunidade nacional. Mente-se hoje nos meandros mais elevados da esfera política com extrema facilidade, desvirtua-se a realidade a cada instante, manipulam-se dados e estatísticas, falta-se a promessas e a compromissos, desrespeitam-se os fundamentos do contrato de legitimidade que o povo concedeu nas urnas. Os políticos de agora preocupam-se sobretudo com as suas “carreiras”, procuram a manutenção ou o acesso ao poder, encantam-se e vivem para o dia a dia das sondagens de opinião. Falta-lhes visão e estratégia, capacidade de perspectivar o médio e longo-prazo, honradez, espírito de lealdade, e as relevantes confiabilidade e credibilidade políticas. E o actual Primeiro-Ministro é o exemplo acabado deste tipo de responsável político a que faltam a maioria destas qualidades que dão necessário sustento à ética das personalidades políticas.

3. A Economia e as Finanças Públicas
A economia portuguesa está em deterioração há praticamente uma década. Não tem existido crescimento económico desde o ano 2000 e o potencial de crescimento para os próximos anos é miserável. O país tem distribuído riqueza que não cria, aumentou enormemente o nível de impostos sobre as classes médias, e investiu preferencialmente em sectores económicos que não produzem bens e serviços para os mercados externos. Ao mesmo tempo, nos últimos anos o défice externo representa quase dez por cento do produto em cada exercício económico, o défice orçamental subiu assustadoramente nos dois últimos anos para os mais de nove por cento da riqueza, a dívida pública directa e indirecta já ultrapassa os cem por cento do PIB, e o endividamento externo total é uma brutalidade, com bancos, empresas e famílias também muito endividados (há cálculos que apontam para bem mais de trezentos por cento do PIB). As receitas do Estado representam já praticamente metade da riqueza criada anualmente, mas agora nos tempos que aí vêm, de grande aperto financeiro nos mercados de crédito internacional e de rigor nas contas públicas a situação portuguesa é de extrema dificuldade ou mesmo de gravidade ímpar. Os anos de imensos sacrifícios/austeridade serão vários, disso não podem haver dúvidas, pelo que o discurso da governação que iludiu tudo isto durante anos é política e moralmente execrável.

4. A Reinvenção do Estado e da Administração Pública
Há mais de trinta anos que se fala na reforma da administração pública. Mas agora, com a reconhecida insustentável situação das finanças públicas, não mais será possível continuar a fazer, como foi recentemente o caso com o governo socialista, umas ligeiras modificações de simplificação, ou de alterações de macroestruturas, sem repensar, remodelar, reconverter, ou no limite extinguir, muitos dos organismos e institutos que compõem o Estado imenso que temos em Portugal. Mais, impõe-se repensar as próprias funções desse mesmo Estado e fazer em Portugal o que muitos países europeus ou mesmo os EUA fizeram de verdadeiramente reformador nas suas administrações públicas. Há inúmeros exemplos de reformas profundas feitas em outros países que podem e devem ser tidas como referências para um verdadeiro exercício de reforma do Estado que agora é imperativo realizar em Portugal. E neste trabalho que será longo e exigível que seja conduzido ao mais alto nível político não podem continuar a existir dogmas ideológicos ou constitucionais que tornem impossível realizar com equilíbrio e justiça o trabalho de reinvenção do nosso Estado para este século XXI.

Nota de Leitura Compreensiva da “Política da Mentira Política”: “E se toda a gente aceitasse a mentira que o Partido impunha – se todos os documentos apresentassem a mesma versão – então a mentira passaria à História e tornar-se-ia verdade. ´Quem controla o passado´, dizia a palavra de ordem do Partido, ´controla o futuro; quem controla o presente controla o passado.`” (citado de “1984”, George Orwell, Editora Antígona).

José Pinto Correia, Economista

terça-feira, 6 de julho de 2010

O Socialismo em Portugal: Fixe e Eterno?

Nos últimos dias têm surgido na cena pública as afirmações de Mário Soares de que Portugal deveria fazer uma qualquer espécie de frente unida com Espanha contra os senhores que vêm comandando a União Europeia, pois que só a “união ibérica” dos socialistas governantes, Sócrates e Zapatero por agora, poderia enfrentar com devido vigor o neoliberalismo vigente lá nos centros europeus (não esqueçamos que também Saramago afinava por praticamente idêntico diapasão).

Também segundo a visionária declaração do doutor Soares, Portugal e Espanha até deveriam, imagine-se, vir a realizar conselhos de ministros conjuntos para afinarem as suas posições estratégicas no mundo europeu e extra-europeu – entenda-se como foi dito pelo próprio na América Latina (que incluiria o Brasil, obviamente). E em Portugal também diz, ao mesmo tempo, o doutor Soares, não existe alternativa ao governo do PS.

Sobre a conjugação dos interesses entre Portugal e Espanha aí está o negócio da PT/VIVO/Telefónica no Brasil para ilustrar a provada conformidade dos mesmos; já sobre a não existência de alternativa ao governo do PS aí estarão os portugueses democraticamente, e provavelmente mais cedo do que tarde, para o definirem em eleições.

Aliás, é este mesmo insubstituível Partido Socialista que também vem dizendo, pela voz do seu líder parlamentar, que na intemporal e inexcedível “Constituição da República Portuguesa” não se toca, que os seus fundamentos e a definição dos alicerces do regime de 1974 são para ficar tal como estão, possivelmente para a eternidade, e sempre assim deverá ser mesmo que seja contra a vontade de parte significativa das actuais ou das novas ou futuras gerações de portugueses.

Portugal está assim, portanto, bem entregue e no “glorioso caminho para o socialismo”, mesmo que não se veja ou se assuma nitidamente nas políticas do dia a dia do governo socialista em funções que pressurosamente se submeteu algures em Maio passado aos ignominiosos ditames neoliberais de Bruxelas.

Só existe para estes arautos plenipotenciários das virtudes inigualáveis da esquerda socialista europeia um governo possível em Portugal, o do PS, e também, evidentemente, uma organização política e social de sentido único, bem como o regime da “Constituição de 1974” (com as adaptações custosamente consentidas por essa mesma esquerda). E há que estender esta magnificência histórica, primeiro a uma qualquer e indefinida “união da Ibéria”, que pretendem os seus arautos que seria provavelmente na Europa de hoje a pátria remanescente desse socialismo, o qual depois, em segundo patamar, se estenderia a toda uma nova Europa federal. Portugal e Espanha seriam, por esta via socialista, os redentores da Europa e como isso também o Partido Socialista obteria a sua completa sagração em Portugal.

A Europa seria, pois, no final de uma imensa caminhada histórica, o repositório das imensas narrativas do século vinte, organizada segundo um modelo federal e também a grandiosa pátria do socialismo democrático.

Só que tem de existir um outro caminho para Portugal, que o retire do empobrecimento consecutivo em que tem caído nestes últimos quinze anos, da falta de esperança económica, que afirme a construção de uma sociedade mais livre económica e politicamente, sem baias constitucionais inultrapassáveis, e capaz de conceder as oportunidades devidas para as novas gerações de portugueses que com maiores níveis de qualificação querem ter sucesso e fazer as suas vidas neste país que é o seu.

O futuro de Portugal não pode ficar preso do passado das últimas décadas, das visões únicas de organização e também de uma narrativa de redenção socialista que tem sido inábil e completamente incapaz de conduzir Portugal a um patamar de riqueza e bem-estar condizente com a pertença a uma Europa mais desenvolvida, mais livre e mais democrática. Não é mais aceitável que Portugal fique amordaçado a uma única visão do seu futuro, preso da pretensão de uma superioridade reverencial da esquemática ideológica da esquerda socialista.

Além do mais, em nenhum outro país europeu, a começar pela própria Espanha, tais narrativas constitucionais ou de regime político e social são toleradas e aceites. Estamos já hoje 36 anos depois de Abril. É mais que tempo de caírem as tentações de encaixotar Portugal numa gaiola constitucional e política de que tem todo o direito de se libertar. A liberdade plena dos portugueses exige-o hoje e amanhã ainda mais. Porque se assim não for os portugueses de ontem e os de amanhã ficarão prisioneiros de um condicionamento tendencialmente totalitário. Não pode existir uma via de sentido único para a realização das aspirações da comunidade nacional e nem o socialismo que está indesmentivelmente traduzido na actual “Constituição Portuguesa” deve ser essa totalizante forma de organizar a nação secular portuguesa.

Portugal tem a obrigação de construir uma estratégia própria de afirmação na Europa e no Mundo, onde a sua indesmentível e histórica vocação atlântica saia reforçada, e na qual o triângulo essencial que reúne a complementaridade geopolítica e geoestratégica da Europa, da África e do Brasil seja estruturada e devidamente gerida.

Aliás, aos que agora vêm afirmar tão categoricamente a afinidade dos interesses e das vocações da Espanha e Portugal bastará citar-lhes, para que meditem e reconheçam a sua limitada visão histórica e estratégica, a seguinte tese do doutor Joaquim Aguiar, que esteve na durante vinte anos na casa civil de dois Presidentes da República (Eanes, primeiro, Mário Soares, depois), exposta no final do seu livro referencial onde descreveu, já em 2005, exaustivamente as causas da nossa crise política e económica estrutural:

"O cenário ibérico está associado ao que se encontra no cenário europeu. Quanto mais fraca for a racionalização europeia, mais forte será a tendência para a centripetação ibérica num espaço regional (em correspondência ao que acontecerá noutras regiões europeias, na medida em que essa fraca racionalização europeia irá estimular a fragmentação da União Europeia em espaços regionais, cada um com o seu centro próprio). Mas este cenário ibérico também estará associado ao que se encontrar no cenário português.
Quanto mais tempo durar a fase de vizinhança da descontinuidade, com o sistema político português a operar longe do equilíbrio, mais fácil e mais inevitável será a penetração de interesses espanhóis no espaço português.
Neste ponto, nem mesmo a fragmentação de Espanha em poderes autonómicos será favorável à defesa da autonomia portuguesas porque, na perspectiva do centro ibérico, a compensação para a fragmentação em autonomias será a inclusão de mais uma «autonomia», com a correspondente gestão conjunta deste sistema regional articulado." (citação do livro "Fim das Ilusões, Ilusões do Fim: 1985-2005", página 444, Editora Aletheia).

Pode assim constatar-se a natureza de submissão estratégica de Portugal subjacente às posições iberistas que defendem a intimidade e o estreitamento relacional entre Portugal e Espanha, incluindo a realização de Conselhos de Ministros comuns. Pode ver-se, ainda mais, ao que vêm e ao que poderão conduzir nesta fase crítica de Portugal e da União Europeia a concretização destas ideias. Mas não é de espantar que a ideologia socialista junta com a do federalismo europeu sejam um caldo de apagamento completo e suicidário de Portugal numa Ibéria, primeiro, e numa Europa indefinida, por último.

Nota Importante: Claro que todo o livro de Joaquim Aguiar demonstra a impossibilidade de manter a narrativa fundadora do regime, da distribuição continuada que tem tradução no tal Estado monstruoso e impagável, e por isso ele define que o estado das coisas já em 2005 era a da proximidade de um ponto de ruptura e descontinuidade. Só que os socialistas deste regime nunca leram ou vão querer ler as teses elaboradíssimas de Joaquim Aguiar (muito embora ele tenha trabalhado na casa civil do próprio Mário Soares ao longo dos seus dois mandatos).

José Pinto Correia, Economista