quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Desenvolvimento do Desporto em Portugal

Passamos seguidamente a publicar o nosso texto da edição de hoje do Jornal "O Primeiro de Janeiro" com o título acima indicado.

O fenómeno do desenvolvimento de um sistema complexo de organizações como o que define o desporto implica mutações em múltiplas variáveis que não se reduzem a alterações quantitativas mas são também, e muitas vezes acima de tudo, correspondentes a mudanças qualitativas de organização, processos, estruturas, projectos e mesmo lideranças corporizadas por actores.

Por isso, quando se procura falar de “desenvolvimento do desporto” tem de se considerar que o desenvolvimento é muito mais do que o mero e simples crescimento, ou uma evolução benévola mas circunscrita a um nível do sistema (por exemplo o desporto profissional ou de alta competição).

Tal como na economia em geral, também no desporto pode haver crescimento que não se traduza inequívoca e directamente em desenvolvimento, pois este implica outros parâmetros de medida e domínios de abrangência.

O “desenvolvimento do desporto” implicará, então, conceptualmente, para além de um crescimento territorial harmonioso do desporto, a equidade e coesão no acesso ao desporto para quaisquer cidadãos, bem como um conjunto de condições básicas de bem-estar e rendimento que permitam a esses cidadãos a prática regular do desporto. O “desenvolvimento do desporto” implica também, por outro lado, o uso pleno das liberdades democráticas e de cidadania, as quais permitem não apenas o acesso ao desporto como também as capacidades individuais de escolha e decisão de o praticar.

Por conseguinte, o “desenvolvimento do desporto” alia a promoção das condições indispensáveis de garantia da equidade da participação à liberdade da prática pelos respectivos cidadãos, enquanto participantes activos da vida social e sujeitos portadores de direitos e de deveres substantivos. Ao desenvolvimento do desporto não interessa apenas a eficiência enquanto propósito organizador do desporto mas também a equidade que implica a promoção de igualdade de oportunidades de acesso e prática regular a todos os cidadãos sem qualquer discriminação.

Como bem dizia Benito Castejon Paz (1973) “O desenvolvimento do desporto é o objectivo maior de toda a política desportiva”. Nesta conformidade, a política desportiva tem de ter como seu desiderato essencial a promoção do “desenvolvimento desportivo”, não pode ficar aquém dessa intencionalidade sob pena de ser ineficiente e iníqua.

Estes pressupostos definidores do desenvolvimento desportivo estiveram subjacentes às denominadas “políticas do desporto para todos”, promovidas durante as últimas décadas do século XX pelo Conselho da Europa e que tiveram nos países nórdicos europeus grandes promotores.

O desenvolvimento do desporto implica, por conseguinte, para os seus principais agentes e decisores, actuando no interior do amplamente denominado sistema desportivo, nele se incluindo a tutela governamental e a administração pública desportiva que desta depende directamente, o dever de actuarem com a intenção essencial de melhorarem os níveis de acesso continuado dos cidadãos nacionais à prática do desporto em todas as faixas etárias e regiões e localidades nacionais.

Tem vindo a ser cada vez mais corrente o uso da denominação de políticas públicas quando se pretende referir a intervenção dos denominados poderes públicos, incluindo necessariamente os governamentais, em áreas de intervenção social.

O desporto não escapa necessariamente, portanto, a esta moderna concepção da intervenção pública, tanto mais quanto se conhece o papel determinante que o Estado/Governo detém na estruturação dos sistemas desportivos na Europa – o que aliás confere características particulares ao denominado “Modelo Europeu do Desporto” colocado em alternativa ao também apelidado “Modelo Norte-Americano do Desporto”.

Jenkins (1978), citado por Barrie Houlihan em “Sport, Policy and Politics: a comparative analysis” (1997), define política pública como “um conjunto de decisões inter-relacionadas adoptadas por um actor político ou grupo de actores relacionado com a selecção de objectivos e os meios de os alcançar no contexto de uma determinada situação em que estas decisões deveriam, em princípio, estar contidas no poder destes actores em as alcançar”.

Portanto, de acordo com esta definição de Jenkins, a política pública em geral, mas também quanto a nós a do e no domínio desportivo, pressupõe, em primeiro lugar, uma inter-relação de decisões, o que sugere que as políticas não são discretas mas constituem um conjunto ou sequência de decisões, obedecendo a critérios explícitos ou, no mínimo implícitos, de racionalidade.

Em segundo lugar, a referência aos actores políticos, enquanto intervenientes de primeiro plano, destaca a relação entre o poder dos actores e a sua influência na concepção e escolha das políticas, o que exalta a importância dos líderes e dos seus respectivos projectos e agendas.

Por último, esta definição de Jenkins indica claramente que a política pública é acerca do estabelecimento de objectivos e da sua concretização, sendo os respectivos meios apenas os instrumentos que estando ao serviço e determinados pelos objectivos permitirão passar da fase inicial de concepção para a da indispensável concretização.

As políticas públicas têm portanto um “ciclo político” que vai da concepção á concretização, num primeiro plano, e se finaliza pela respectiva avaliação que vai alimentar de novo o seguinte ciclo da política.

As políticas públicas desportivas podem também actuar aos diferentes níveis do sistema desportivo, desde o de base não competitivo até ao profissional e de alta competição.

Se nos concentrarmos na actuação ao nível do desporto de base, o “desenvolvimento desportivo” exprimir-se-á então, designadamente, pelo conjunto de acções e meios de aumento da prática desportiva regular equilibrada territorialmente, pela promoção da prática desportiva pelos estratos sócio-económicos etários mais excluídos habitualmente da mesma, pelo conjunto de infra-estruturas e organizações públicas, não-lucrativas e privadas que promovem actividades desportivas, pela melhoria da formação de técnicos e treinadores das modalidades, pelo aumento de educadores escolares ligados à prática desportiva.

Estas realizações de “desenvolvimento desportivo de base” serão executadas por estruturas organizativas específicas. Entre as quais se incluem as escolas dos diferentes níveis de ensino, os clubes desportivos, as autarquias locais e outros actores não-públicos, actuando preferencialmente segundo lógicas de parceria estratégica e de rede.

E fará todo o sentido que espacialmente, de acordo com a matriz de organização territorial, para prossecução de harmonia e coesão de desenvolvimento do sistema desportivo, se concretizem mecanismos de planeamento estratégico que enquadrem devidamente os objectivos das entidades parceiras e das redes. Só desta forma, o “desenvolvimento do desporto de base” obedecerá a lógicas de planeamento flexível, mas estratégico, direccionadas para o alcance de metas relevantes de “desenvolvimento desportivo territorial” – as quais podem e devem estar em linha com os “grandes objectivos estratégicos nacionais de desenvolvimento” definidos pela governação política do desporto.

Trata-se, por conseguinte, de fazer funcionar devidamente um processo de desenvolvimento planeado e estrategicamente enquadrado, participado pelos agentes relevantes actuando em redes de concretização, flexível e permanentemente ajustável, territorialmente delimitado e definido, e inserido nos objectivos nacionais de desenvolvimento que estarão consagrados numa estratégia superiormente definida pelas entidades de governação política do desporto nacional.

Mas uma estruturação do “desenvolvimento desportivo de base” como a descrita exige, desde logo, uma capacitação de “planeamento estratégico nacional” no vértice da governação política do desporto nacional. Desse vértice devem sair, depois de cuidada e profunda análise e diagnóstico da situação desportiva, as “grandes orientações estratégicas de desenvolvimento” deste desporto de base. O que implica que residam neste órgão de governação do sistema capacidades técnicas, conceptuais e analíticas, que permitam a concretização deste instrumento racionalizador por excelência da actividade política que denominamos de “grandes orientações” – mas que também pode adequadamente denominar-se como “estratégia de desenvolvimento”.

Um exercício deste teor deve considerar que a “Estratégia deve ser pensada como um padrão de propósitos, políticas, programas, acções, decisões, e/ou afectações de recursos que define o que [uma determinada] organização ou sector é, faz, e porquê o faz” (segundo John M. Bryson em "Strategic Planning for Public and Nonprofit Organizations", 1995).

Esta definição de Bryson implica a existência de uma “cadeia instrumental” que sustenta e consubstancia uma estratégia, e que vai dos propósitos (ou objectivos numa acepção lata) até à respectiva afectação de recursos às finalidades definidas política e programaticamente.

Trata-se, por conseguinte, de uma abordagem racionalista à estratégia, cuja principal virtualidade é a de definir as diferentes etapas ou fases que o processo estratégico deve compreender (é, por conseguinte, um entendimento de carácter prescritivo, inevitavelmente determinado pela perspectiva racionalista do processo de planeamento e que corresponde a uma das suas respectivas “escolas”).

Claro está que a estas “orientações ou estratégia de desenvolvimento” deve estar subjacente um horizonte temporal relativamente amplo, e em regra nunca inferior a cinco anos, podendo apontar-se para um horizonte desejável de duas legislaturas, oito anos portanto, período que coincide também com dois ciclos olímpicos e que assim faria corresponder o horizonte de planeamento com os denominados ciclos olímpicos desportivos.

Um tal horizonte temporal de enquadramento permite obviar às pressões imediatistas e de curto prazo que impedem alterações ambiciosas e continuadas de mais largo prazo e que apenas podem resultar de visões alargadas e amplas descortinadas em períodos mais longos. Só nestas condições poderá estar-se perante exercícios de “planeamento estratégico” que impliquem alterações substanciais das situações de partida (devidamente diagnosticadas e conhecidas até quantificadamente) e nas quais se envolvam ambiciosamente os respectivos líderes e agentes da mudança desejada/projectada – com os governamentais em plano de destaque, obrigatoriamente, em razão da matriz europeia do modelo desportivo atrás mencionada.

Como também muito avisadamente referia Benito Castejon Paz “Uma política desportiva só pode ter finalidades especificamente desportivas…”, porque o desporto deve ser entendido não apenas como uma função social, económica ou cultural, mas como ele também dizia “como um fim em si-mesmo”.

Ora, sendo a escolha dos objectivos o problema fundamental de todas as políticas, os “objectivos do desenvolvimento desportivo” devem centrar-se, por isso mesmo, fundamentalmente, no próprio desporto como finalidade humana, excluindo-se assim todas as restantes finalidades extra-desportivas (na categorização de Benito Paz).

Nenhuma política desportiva consequente e racional pode, por conseguinte, dispensar a prévia e ordenada definição de objectivos. Porque os objectivos clarificam e direccionam as vontades, fixam o quadro geral das ambições, guiam as acções individuais e colectivas, e justificam os meios ou recursos considerados como necessários e/ou imprescindíveis para as realizações/resultados almejados.

Para além de que é com base nestes mesmos objectivos, desmultiplicados obviamente num determinado conjunto de metas concretas, que será mensurável o grau e a adequação das realizações e se tornará possível a “prestação efectiva de contas” (a denominada “accountability” dos anglo-saxónicos) aos respectivos “interessados” (os “stakeholders” na denominação correntemente usada pelos mesmos anglo-saxónicos).

Tudo o que acabamos de dizer para “planeamento do desenvolvimento do nível de base do desporto” deve identicamente aplicar-se ao desporto de alta competição, designadamente ao que corresponde à preparação dos ciclos olímpicos. Por isso, é tão importante a avaliação dos resultados de cada ciclo na preparação dos novos e subsequentes ciclos como destacámos no nosso texto anterior (vide edição de 9 de Outubro p.p.).

No desporto, em razão da sua importância social, cultural e económica, que tem incidência colectiva nas localidades, regiões ou mesmo no todo nacional, surgem naturalmente envolvidos interessadamente nos resultados destas políticas públicas de promoção e desenvolvimento múltiplos actores e entidades.

A primeira destas é necessariamente o próprio Estado/Governo que tem papel determinante na concepção das próprias políticas e na provisão de meios e instrumentos da sua efectiva concretização. E entre nós, em Portugal, para além de tudo o que fica referido, ao Estado/Governo incumbem especiais deveres constitucionais relativamente à garantia de acesso dos cidadãos ao desporto – e respectiva prática, obviamente.

Por isso mesmo, seria de esperar um visível esforço e actividade de planeamento do desenvolvimento desportivo, ainda que de carácter eminentemente flexível e não centralizado, que permitisse conhecer os grandes objectivos e instrumentos de evolução do desporto num horizonte temporal relativamente amplo – nunca inferior a dois mandatos ou ciclos olímpicos, portanto a oito anos.

Só que esta expectativa surge óbvia e categoricamente desmentida pela realidade observável desde há longos anos, dado que nas últimas legislaturas (para aqui nos circunscrevermos apenas) nunca existiu sequer um esboço suficientemente articulado e participado neste sentido racionalizador e orientador. Esta inexistência concede ao poder político governamental quer uma discricionariedade de intervenção no desporto, por um lado, permitindo-lhe assumir quaisquer objectivos e acções independentemente da sua criteriosa justificação estratégica, quer uma constante actuação percebida como improvisada e incaracterística, por outro lado, dado não se tornar perceptível a sua inclusão sucessiva em determinado “quadro racionalizador” previamente conhecido.

Portanto, em Portugal as políticas públicas desportivas estão muito distantes dos pressupostos de racionalidade e do instrumental enquadrador ou de fundamentação a que poderiam, ou melhor e mais prescritivamente, deveriam estar submetidas. E também não existem instrumentos de apoio à concepção e fundamentação essenciais – como os estudos e análises circunstanciados e actualizados – à definição de objectivos, programas e metas do respectivo “desenvolvimento do desporto”.

José Pinto Correia,
Mestre em Gestão do Desporto







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