segunda-feira, 6 de outubro de 2008

As Políticas Desportivas Comparadas: Portugal vs. Reino Unido (III)

Aqui passamos a publicar o terceiro e último texto de uma trilogia sobre políticas desportivas comparadas editado no Jornal "O Primeiro de Janeiro" do passado dia 2 de Outubro.

Vamos apresentar hoje, em conclusão, a visão de desenvolvimento desportivo constante do documento “A Sporting Future for All” (Um Futuro Desportivo para Todos), que constituiu, como dissemos anteriormente, a primeira manifestação formal de política desportiva do partido trabalhista do Reino Unido, e foi publicado no ano 2000.

Passemos então a analisar, seguidamente, o conteúdo do referido documento britânico no que respeita à visão que presidia aquele novo instrumento de política desportiva. Esta visão estava depois devidamente detalhada para implementação num plano de acção que não é aqui, por vantagem simplificativa, objecto de referência – e ambos compunham a denominada estratégia de desenvolvimento do desporto no respectivo horizonte temporal de referência. Vejamos então:

A Visão
Esta visão, é uma das duas partes da estratégia sendo a outra o plano de acção que a concretiza, e apresenta-se subdividida nos seguintes cinco níveis:

Um primeiro nível desta visão respeitava ao “Desporto na Educação” onde se assume desde logo o objectivo de aumento da participação dos jovens. A educação física e o desporto são considerados como parte fundamental na educação dos jovens, não apenas pela participação mas também pela ajuda no desenvolvimento de valores importantes como a disciplina, o trabalho de equipa, a criatividade e a responsabilidade.

E embora exista uma tradição de as escolas Inglesas fornecerem educação física e desporto de alta qualidade, assume-se que nos últimos anos essa provisão tinha decaído em muitas delas. Por isso, se impunha uma reviravolta nesse estado de coisas, através de uma nova abordagem que criasse mudança sustentável e de longo prazo, apoiando os professores, os pais e os jovens.

A nova ambição era, assim, a de aumentar os padrões da educação física e do desporto escolar em todas as escolas permitindo-lhes alcançar os níveis das melhores delas. Para tal estava previsto um plano dividido em cinco partes com a ambição de dar um novo fôlego ao desporto escolar e que incluía:

Reconstrução das instalações desportivas escolares, através de uma nova iniciativa dotada de 150 milhões de libras para reconverter as piores instalações desportivas e artísticas escolares nas escolas primárias; ao mesmo tempo o Sport England afectaria 20% dos fundos da lotaria ao desporto juvenil para ser atribuído sobretudo às escolas; e seriam incentivadas as federações desportivas a investirem uma parte dos seus rendimentos provenientes dos direitos televisivos em instalações desportivas escolares;

Criação de 110 “Colégios Desportivos Especializados” em 2003, que corresponderiam a escolas secundárias com um foco especial na educação física e desporto, para liderarem a prática inovadora e trabalharem com escolas secundárias e primárias parceiras na partilha das boas práticas e no aumento dos padrões desportivos; trabalhariam também com a profissão da educação física para ajudar os professores a melhorarem a qualidade e a quantidade da educação física e do desporto em todas as escolas;

Extensão de oportunidades para além do dia escolar encorajando as escolas a prover um leque de actividades extra-escolares para todos os alunos independentemente da sua idade; previsão do dispêndio de 240 milhões de libras para apoiar as escolas a fornecer um leque destas actividades de aprendizagem extra, incluindo as de educação física e desporto;

Estabelecimento de 600 coordenadores de desporto escolar nas comunidades mais necessitadas, baseadas em grupos de escolas ligados pelas “Autoridades Locais Escolares” aos “Colégios Desportivos Especializados”; esses coordenadores fomentariam oportunidades de competição regular para os jovens num leque alargado de desportos, envolvendo nos três anos subsequentes 150 grupos de escolas que juntassem cerca de 600 escolas secundárias e 3000 escolas primárias;

Assegurar que os jovens mais talentosos dos 14 aos 18 anos tivessem acesso ao apoio de treino que os competidores de elite necessitam para serem campeões mundiais no futuro; criação de uma “Rede de Colégios Desportivos Especializados” explicitamente focados no desporto de elite.

Um segundo nível desta visão respeitava ao “Desporto na Comunidade” onde se destaca a perspectiva do fomento da participação desportiva ao longo da vida.

Considera-se que o desporto não acaba, por isso, no portão da escola, ele é a actividade de lazer mais popular – com mais de metade dos adultos a participarem semanalmente num leque alargado de actividades, desde as caminhadas ao hóquei, o futebol e natação. O desporto representava ainda 12 biliões de libras de despesas de consumo e empregava cerca de 420.000 pessoas.

Todavia, enuncia-se a existência de diferenças marcadas na participação entre homens e mulheres, grupos étnicos e nas diversas classes sociais – os profissionais qualificados participam mais que os trabalhadores não especializados e são em maior proporção membros de clubes desportivos, por exemplo.

O objectivo era, por isso, o de reduzir a desigualdade de acesso ao desporto ao longo dos próximos dez anos, investindo para tal nas instalações para o desporto de base e incentivando todos os envolvidos no desporto a concertarem esforços para darem oportunidades de prática aos actualmente dela excluídos. Seria também realizado um esforço para evitar o desmantelamento de campos desportivos existentes nas localidades e escolas, reforçando as “Orientações de Política de Planeamento sobre Desporto e Recreação”. E seriam feitos investimentos em diferentes tipos de instalações desportivas comunitárias, através de fundos provenientes da “Lotaria Nacional”, baseados numa auditoria de âmbito nacional que permitisse determinar quais os locais com maiores carências – este trabalho de avaliação foi, então, solicitado ao Sport England e à “Associação do Governo Local”.

Por outro lado, foi anunciado também um montante de 125 milhões de libras do “Fundo das Novas Oportunidades” para a criação de novos espaços verdes. E o Sport England investiria 75% do rendimento proveniente da “Lotaria” no desenvolvimento do desporto comunitário, por exemplo na construção de instalações de “indoor” para ténis, instalações multiusos, e no desenvolvimento de programas de treino para jovens em cidades do interior. Isto tudo constituiria uma melhoria massiva nas instalações desportivas significando entre 1.5 e 2 biliões de libras dispendidas ao longo dos próximos dez anos no desporto comunitário, especialmente nas zonas mais carenciadas do país.

Ao mesmo tempo, esperava-se que os desportos com significativos rendimentos de direitos de transmissão tivessem uma especial responsabilidade neste desenvolvimento desportivo e dedicassem pelo menos 5% desse rendimento, mesmo 10% a médio prazo, às instalações do desporto de base. Sempre que possível este novo investimento nas instalações do desporto de base deveriam ser direccionados para as escolas, melhorando essas infra-estruturas e aprofundando o compromisso do Governo de colocar as escolas no coração da vida comunitária.

Considerava-se que o trabalho de inclusão social estava bem para além das instalações e implicaria a acção conjunta das autoridades locais, das federações desportivas e das organizações financiadoras – pois sabia-se que o desporto constituía um dos melhores mecanismos de quebra de barreiras sociais. As autoridades locais teriam o seu destacado papel na promoção destas oportunidades de acesso e inclusão, usando cada vez mais os respectivos “Agentes de Desenvolvimento Desportivo”.

Também se exigiria uma estrutura de clubes mais profissional que complementasse devidamente o papel das escolas – sendo reconhecido o elevado número e a tradicional predominância dos clubes amadores baseados em voluntários –, pois os clubes são um elo vital entre as escolas e a competição de alto nível. Queria-se, por isso, desenvolver com apoio das federações desportivas e das autoridades locais uma mais eficaz estrutura de clubes, incentivando os clubes com potencial para desenvolverem várias equipas que oferecessem oportunidades para progresso para níveis mais elevados de competição, bem como a promoverem a gestão profissional de todas as suas actividades.

Ao longo dos próximos dez anos queria-se, por conseguinte, transformar o panorama do desporto de base do país – o qual era considerado um meio insubstituível para aumentar a participação e de melhorar a respectiva competitividade internacional.

Um terceiro nível desta visão respeitava à “Excelência no Desporto” onde se destaca o desenvolvimento do(s) talento(s).

Reconhecia-se que o país tinha alguns dos melhores desportistas mundiais e que os mesmos têm níveis de desempenho internacional apreciáveis. Mas também se reconhecia o desapontamento com os resultados alcançados nos Jogos Olímpicos de Atlanta 1996, no rugby, cricket e no Campeonato do Mundo de Futebol.

Assumia-se que a inconsistência dos resultados derivava da falta de gestão e planeamento para o sucesso futuro e que alguns dos muito bons resultados individuais alcançados eram devidos ao acaso e boa vontade ou à união ocasional de atletas e treinadores excepcionais. Por isso, o país teria de aprender com as nações concorrentes e ter um sistema mais profissional para o desenvolvimento de talento(s) e de apoio à excelência. Algumas federações desportivas já tinham desenvolvido esses sistemas, pelo que havia que tentar generalizá-los e apostar no alargamento da base de participação desportiva.

O sistema deveria apoiar os jovens talentosos em cada passo do seu percurso com a ajuda de bons treinadores que identificassem esse potencial e desenvolvessem o respectivo talento. Assumia-se ter sido esse o caminho que seguiram as nações bem sucedidas desportivamente, pelo que seria pedido a todas as federações desportivas que criassem um plano de desenvolvimento de talento(s) onde se identificassem os caminhos desde o nível de base até ao de competição internacional dos seus desportos, sem esquecer os desportistas portadores de deficiência.

Por outra parte, os “Colégios Desportivos Especializados” teriam um papel chave e trabalhando com as federações nacionais identificariam os jovens de 14 anos mais talentosos oferendo-lhes condições de prática, de treino de topo e de tutoria desportiva nesses Colégios. Estes serviriam também para alcançar novos talentos oriundos de grupos tradicionalmente sub-representados no desporto, incluindo minorias étnicas e os provenientes de estratos socioeconómicos desfavorecidos, ao mesmo tempo que estariam ligados à “Rede Nacional de Centros do Instituto do Desporto do Reino Unido” que tinha um “Programa de Classe Mundial” de fomento do desporto de alta competição.

As Federações Desportivas Nacionais definiriam, por seu turno, mais estritamente as suas metas para os respectivos atletas individuais e equipas de modo a serem consideradas nas negociações dos respectivos planos de financiamento pelos “Conselhos Desportivos Nacionais” (“Sports Councils”).

Afirmava-se ainda que esta estratégia para a excelência não apresentaria resultados da noite para o dia; e que uma estratégia de desenvolvimento de talento(s) bem sucedida só daria dividendos a médio prazo, pelo que o seu teste efectivo seria o seu desempenho em 2010 e não já em 2002.

Um quarto nível desta visão respeitava à “Modernização” onde se destacava como subtítulo “A Parceria com o Desporto”.

Afirmava-se que da experiência de outros países resultava que a organização profissional e a administração moderna que sustenta todo o desporto, desde as escolas primárias até ao nível de elite, favorecia e aumentava a possibilidade de sucesso internacional. Por isso, era necessário um repensar radical do modo como se financiava e organizava o desporto – repensar esse que a estratégia agora definida promoveria.

Por conseguinte, seria estimulada uma parceria modernizadora com as federações desportivas nacionais, com o sector público a continuar a apoiar o desporto e as suas fundações como tinha vindo a ser feito, mas dando aquelas federações uma maior intervenção no modo como esses mesmos fundos seriam gastos com as condições seguintes:

Que os desportos bem sucedidos comercialmente também contribuíssem para o investimento nas instalações para o desporto de base em escolas e instalações locais, desenvolvimento de clubes e desenvolvimento de treinadores (5% dos rendimentos de direitos televisivos no imediato, mas com evolução até 10% no médio prazo);

Que todas as federações desportivas concordassem em fixar e assumir determinadas metas para o desenvolvimento dos seus respectivos desportos.

Estas parcerias seriam usadas para modernizar e profissionalizar o modo como o desporto era dirigido e os poderes seriam devolvidos às federações desportivas sempre que elas possuíssem estratégias claras para a participação e a excelência no seu desporto, e se comprometessem a colocar a inclusão social e a igualdade de oportunidades no centro das suas actividades (políticas inclusivas, por conseguinte). Em troca da maior intervenção no uso dos recursos públicos as federações deveriam operar num novo ambiente e procurar atingir metas desafiadoras quanto a:

Desenvolverem o desporto nas escolas e na comunidade, especialmente nas áreas desfavorecidas;

Fornecerem treinadores com adequada formação para apoiarem os professores nas escolas primárias e secundárias;

Melhorarem as oportunidades de prática para as minorias étnicas e pessoas com deficiência e para as raparigas e mulheres participarem, liderarem, treinarem e arbitrarem;

Terem bons planos de desenvolvimento de talento(s) para permitirem aqueles que o desejassem e tivessem capacidades chegarem aos mais elevados níveis de competição desportiva;

Terem uma robusta gestão, planeamento e monitoria de todas as suas actividades.

O princípio era, portanto, simples e os desportos que demonstrassem essas metas e uma boa estratégia para o desenvolvimento do seu desporto desde a base até ao mais alto nível, ganhariam mais responsabilidade no uso dos respectivos fundos.

Todas estas mudanças implicariam também um novo papel para o Sport England, tornando-o mais estratégico e concentrado em prioridades gerais e programas para o desporto em cooperação com o “DCMS – Department for Culture, Media and Sport” (Departamento para Cultura, Media e Desporto) que na estrutura do Governo tinha a tutela do desporto. O Sport England apoiaria, por isso, as federações desportivas a desenvolverem competências profissionais e sistemas modernos e a ligar o financiamento futuro aos progressos desportivos de aumento da participação e dos resultados no alto nível de competição.

Um quinto e último nível desta visão respeitava à “Implementação” a qual procurava definir uma “Parceria para a Mudança.

Esta implementação, a qual é depois detalhada no respectivo “Plano de Acção” que completa o documento, exigiria a assunção da agenda comum por todos os envolvidos na organização e gestão do desporto no país. Mas mais, é dito que a eficácia desse “Plano de Acção” dependeria, sobretudo, de uma melhor gestão e coordenação de todos os que são convidados a concretizá-lo: governos locais, federações desportivas nacionais, os profissionais da educação física, os Conselhos Desportivos.

E também se afirma, mesmo no final, que todos quantos se interessam pelo desporto têm um papel a desempenhar neste criar de um melhor “futuro desportivo para todos”.


Esta visão que integrava a respectiva estratégia de desenvolvimento desportivo para o Reino Unido oficialmente assumida pelo Governo trabalhista em 2000 permite-nos agora, por simples método comparativo, reafirmar a inexistência de quadros de referência desta natureza em Portugal desde há muitos anos.

Por isso, as políticas desportivas entre nós optam, normalmente, por grandes projectos jurídicos habitualmente envoltos em grandiloquentes leis de bases e respectivas regulamentações, ao mesmo tempo que coexistem com inúmeros improvisos e acções avulsas insusceptíveis de escrutínio e avaliação, porque não assumidos previamente em documentos orientadores como o que acabámos de descrever ao longo destes nossos três textos.

José Pinto Correia, Mestre em Gestão do Desporto

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