“O melhor líder é aquele de cuja existência o povo mal se apercebe; menos bom é aquele que é obedecido e aclamado pelo povo, o pior é aquele que o povo despreza”, Lao Tzu, 630 a. C.
Nos últimos tempos temos assistido a fenómenos muito estranhos no que respeita à governação de Portugal. Ainda mal se iniciou a nova legislatura e já existem ameaças veladas de que o Governo não é capaz de governar, por as oposições parlamentares terem aprovado algumas iniciativas legislativas que contrariam as opções do Governo. Lembremos, todavia, que estas mesmas escolhas governativas tinham sido realizadas num ambiente parlamentar que desapareceu e que permitia à maioria política antecedente praticamente governar sempre ao arrepio das restantes forças e representações políticas.
É indiscutível que governar em situação difícil como é a actual de Portugal implica a capacidade de visão do futuro, de diagnosticar acertadamente as dificuldades e incapacidades económicas, sociais, culturais e morais do país. Um Governo tem de se apresentar perante os portugueses com uma verdadeira e inequívoca estratégia de saída da crise e de criação de um futuro nacional melhor, mais rico e mais justo. É, pois, difícil de aceitar estas afirmações de incapacidade de governar que vêem do próprio Primeiro-Ministro recentemente empossado e de vários dos políticos de primeiro-plano que pertencem aos quadros políticos do partido que sustenta o Governo em funções plenas.
Impõe-se, por isso, que aqui e agora façamos uma reflexão sobre as lideranças políticas governamentais, a sua natureza e capacidades essenciais, e, bem assim, os modos como essas lideranças políticas devem incorporar os desejos e vontades dos governados e desenhar as consequentes estratégias de desenvolvimento, ou no caso actual, definirem as linhas orientadoras da saída da crise gravíssima de empobrecimento e potencial decadência progressiva em que Portugal se encontra no final de 2009.
Os portugueses poderiam pensar que quando votam e escolhem os seus representantes na Assembleia da República que, depois, por decorrência da maioria dos deputados, dão origem à investidura de um Governo, tal escolha e instituição, juramentada pelo Primeiro-Ministro escolhido de entre os militantes do partido mais votado, daria natural e devidamente origem a um Governo. E pensariam também que este órgão de soberania, detentor do poder executivo, procuraria dar um caminho e orientação para o País, sendo que, num contexto de crise gravíssima como a actual, essa condução é absolutamente vital para assegurar a própria salvaguarda da coesão e acalmia social.
O Governo investido apresentou em tempo perante a Assembleia da República o seu Programa e pensar-se-ia que iria começar a preparar a implementação de um conjunto de opções políticas e económicas naturalmente decorrentes do diagnóstico detalhado da situação da crise nacional que precedentemente tinha realizado o partido que lhe dá apoio político e institucional.
Assim, seria natural e exigível que o Governo pudesse apresentar à sociedade portuguesa rapidamente as grandes linhas de orientação e o caminho e estratégia que pretenderia seguir para enfrentar os graves problemas nacionais e conduzir o país no espaço da legislatura para uma melhor situação económica, social e moral.
Só que, como acontece em todas as demais instituições da vida económica e nacional, o Governo carece de uma liderança efectiva e visionária que seja capaz de afirmar o conjunto de ideias e opções estratégicas de condução do país e se demonstre como inequivocamente determinada e empenhada no encontrar das soluções que mais eficazmente possam garantir a renovação económica, social e moral da República portuguesa.
Esse importantíssimo papel de orientação e vislumbre do futuro novo e desejável é o papel nobre dos líderes, que nobilita quem o exerce perante os que o seguem, neste caso dos principais líderes políticos do Governo. E o principal intérprete dessa liderança transformacional e visionária só pode ser no caso do Governo o próprio Primeiro-Ministro em funções.
As lideranças, designadamente as de teor político, sabe-se bem, assumem muito maior relevância e determinação nos momentos e situações de crise grave – que é indiscutivelmente a que vive hoje a muitos títulos e com muitas repercussões a situação actual da República portuguesa.
Uma verdadeira liderança, que possa ser seguida pelos principais intérpretes e agentes económicos, sociais, culturais e morais, e indispensavelmente constituir a referência das acções e comportamentos da maioria dos cidadãos, precisa de ter uma visão orientadora ambiciosa mas lúcida que lhe permita fazer as escolhas e determinar os objectivos e orientações das políticas. E a liderança eficaz precisa de legitimidade para poder ter a capacidade de persuadir e conquistar os cidadãos para esse novo e melhor caminho do futuro, do qual não podem restar dúvidas que será melhor do que aquele que constituirá a perpetuação do presente e das perspectivas negativas que deste decorrem.
Não há líder, nem liderança efectiva, sem que exista confiança e “confiabilidade” nas propostas, nas acções e no carácter dos líderes. Os líderes têm de ter ideias e valores influentes, mas que sejam eficazmente mobilizadoras da acção dos protagonistas sociais e económicos, dos cidadãos de um modo geral.
Por isso mesmo, as estratégias e tácticas de manipulação perceptíveis são contraproducentes, porque desvanecem a confiança nas capacidades e competência dos líderes que as praticam e degradam o carácter de quem as teima em praticar. E, nestes casos, a retórica das boas intenções é facilmente entendida como despicienda, tornando-se em mais um obstáculo para consequente percepção de confiança nos líderes e na sua indispensável liderança política.
Os líderes que querem ter efectivamente a possibilidade de afirmar a sua capacidade de condução estratégica da sociedade e da vida política, de serem respeitados e seguidos pelos cidadãos para quem governam, devem basear a sua acção e escolhas em princípios e valores indiscutíveis. Princípios básicos como a lealdade, a equidade, a justiça, a integridade, a honestidade e a confiança, são os ingredientes essenciais de uma boa liderança. A liderança que se afirma em função de princípios e valores básicos permite aos líderes serem directos, honestos e frontais, por um lado, e evitarem com sucesso evidente os truques da duplicidade e da desonestidade, isto para evidente contragosto de muitos que pretendem e anseiam pela manipulação e a dissimulação ou a propaganda disfarçada de retórica ínvia ou vazia.
Os líderes que respeitam estes princípios são merecedores de confiança intuitiva pelas pessoas, que passam a aceitar uma personalidade e um carácter que lhes dá o exemplo, o bom exemplo, e lhes permite aceitar sem dúvidas a personalidade do líder e as suas escolhas e opções. E permitir-lhes-à estabelecer com esse líder relações de prazo longo, derivadas dessa “confiabilidade” que se mantém ao longo do tempo.
Um líder que representa valores que os outros aceitam e desejam seguir tem sempre um exercício mais fácil de liderança; a dúvida e a dificuldade de aceitação das orientações e acções dos líderes são nestes casos muito menos evidentes, porque as pessoas reconhecem as guias condutoras e a sua ancoragem em bens superiores que se expressam nos valores que os líderes afirmam e comunicam partilhar.
As qualidades do líder ou dos líderes eficazes de hoje, para aqueles a quem se dirigem no sentido de influenciarem ou conduzirem num determinado sentido e direcção, são menos as de um “Grande Chefe”, inundado de um poder profético ou heróico, e sobretudo as de alguém que é capaz de “compreender a diversidade de motivos dos seus concidadãos, as diferenças de intensidade com que eram defendidas as posições contrárias, e a direcção da mudança de cada uma delas, de momento a momento” (como escreveu Garry Wills a respeito das capacidades indiscutíveis de Lincoln).
Os líderes grandes e exemplares de agora são sempre o produto de grandes causas que eles mesmos em muitos casos capazes definem e incorporam, e por isso os líderes desempenham as funções em benefício de uma comunidade criando sentido e objectivos, reforçam a identidade e a coesão nacional e estabelecem a ordem necessária à mobilização do trabalho colectivo aos mais diversos níveis e actores sociais, económicos e culturais.
Claro está que os líderes detêm poder e influência e exercem autoridade, pois que a liderança é em si-mesma sempre uma relação de poder. Mas os líderes democráticos são cada vez menos aqueles que se afirmam pela coacção e o medo e mais pelo denominado poder brando (o denominado “soft power”). Este tipo de poder implica a persuasão, a admiração das qualidades de comunicação, o predomínio do espírito de negociação, o entrosamento com as necessidades e anseios dos liderados, como principais componentes da afirmação do poder dos líderes. O poder para estes líderes democráticos é, então, como afirmou Richard Neustadt, “sobretudo a capacidade de persuadirmos os outros de que é do seu próprio interesses fazerem aquilo que queremos que eles façam”.
Acresce que o contexto em que se exerce o processo de liderança é decisivo para a emergência e sucesso dos líderes actuais. O contexto do exercício do processo de liderança, que é agora sempre caracterizado por fenómenos e factores grandemente voláteis e indefinidos ou complexos, pode determinar as condições efectivas de sucesso dos líderes existentes ou contribuir para a emergência de outros mais ajustados e capazes de lidarem com esses grandes constrangimentos situacionais. Por isso, as situações de crise, e especialmente as de crises gravíssimas, determinam líderes especiais que ainda que sejam “indivíduos que não controlem as ondas, possam cavalgá-las; que não controlando os acontecimentos ou as estruturas, possam prevê-los e, em certa medida, subordiná-los aos seus propósitos” (John Kingdom, citado em Joseph Nye, Jr., pág. 26).
Nas situações de crise grave não bastará aos líderes a apresentação de propostas que continuem a concretizar o que aconteceu no passado que se demonstrou medíocre. São necessários, por isso, novos modelos e orientações que permitam fazer o necessário e o diferente para o futuro que se avizinha como perturbante.
Estes novos líderes têm de ser transformacionais, não se podem limitar a lidar com o contexto em que actuam, têm de ser capazes de transformar as limitações e fragilidades em rupturas que conduzam a melhores soluções no futuro para os principais temas e problemas que definem a situação de partida. Têm, por conseguinte, de agir não apenas sobre os acontecimentos mas de fazerem os próprios acontecimentos. “A importância dos líderes é ligeiramente maior ou menor, dependendo do modo como eles diagnosticam as situações de crise, das respostas que prescrevem para as resolver e da capacidade de mobilizarem o apoio das suas comunidades políticas”.
Os líderes autênticos são verdadeiramente humildes. Isto é, são capazes de voltar atrás e verem as coisas, examinarem os problemas de outra forma, perspectivarem novas soluções e fazerem outras escolhas – negociando politicamente e em permanência como os actores relevantes do sistema.
E hoje, perante a crise gravíssima de Portugal, a liderança política que comanda o Governo do país tem de ser capaz de visionar o futuro desejável, de antecipar as dificuldades da rota de correcção das incapacidades, fragilidades e insuficiências, de desenhar exercícios de prospectiva e de concepção de estratégia de desenvolvimento, que permitam uma nova esperança para Portugal neste primeiro quartel do século XXI. Será necessário prever e projectar as mudanças das estruturas e sistemas que condicionam o desenvolvimento e o crescimento económico e ir reformando profundamente as componentes da moralidade da República.
A humildade destes líderes revela a sua autenticidade e a nobreza do seu carácter e da sua inteligência – as quais exprimem a grandeza ética dos líderes. Como bem refere Stephen Covey “ A pessoa ética olha para cada transacção económica como um teste à sua administração moral. É por isso que a humildade é a mãe de todas as virtudes – porque ela promove a administração”.
A boa moral, a grandeza de valores e de actos dos líderes, é, por isso mesmo, uma condição insubstituível para a correcta e justa condução dos negócios públicos e do Governo de Portugal. Nunca devemos aceitar que o Governo da nossa 3ª Republica possa estar subjugado às máximas de Maquiavel de que “Deveríamos ser temidos amados, mas dada a dificuldade em conciliar ambas as coisas, é muito mais seguro ser temido do que amado […]. Todavia, ainda que não conquiste amizade, um líder deve fazer-se temer de tal modo que evite ser odiado”.
Um líder político de um Governo, um Primeiro-Ministro, não pode nem deve querer ser temido pelo medo que inspira, porque o contrário do medo nunca é o amor mas sim o ódio (como bem o percebeu o próprio Maquiavel naquela indicação que deu ao seu Príncipe da época). E nunca poderá o Primeiro-Ministro de Portugal entender que manobrando pelo temor e medo que instila nos governados e nos restantes actores políticos está a governar para o bem do povo – isso é uma contradição insanável que terminará mais cedo ou tarde por uma “revolta popular”, nem que seja apenas expressa nas urnas eleitorais como acontece sempre em regimes de democracia liberal como é o de Portugal desde 1974.
José Pinto Correia, Economista
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