terça-feira, 29 de dezembro de 2009

É a Democracia Senhor Engenheiro!


Portugal tem desde finais de 1975 um regime político de democracia liberal, pelo qual lutou nas ruas e que consagrou constitucionalmente. E por isso mesmo, de tempos a tempos, o povo é chamado a escolher os seus representantes políticos no Parlamento da Nação. Dessa representação parlamentar decorre a formação de um Governo empossado perante o Presidente da República que interpreta o significado do acto eleitoral e a vontade popular assim livremente expressa.

Foi isso mesmo que aconteceu em Setembro passado depois de uma legislatura inteirinha de mais de quatro anos em que mandou a seu belo prazer a maioria politica de um só partido, o partido do Senhor Engenheiro Sócrates. Mas nesse pretérito Setembro o lídimo repositório da democracia, isto é, o povo, que somos todos nós que votámos como quisemos e de acordo com as nossas opções, não voltámos a dar a maioria absoluta ao Senhor Engenheiro socialista.

Divididos os votos nas eleições legislativas por vários partidos, formou-se apenas e agora uma maioria relativa dos socialistas uma vez mais encabeçados pelo Engenheiro Sócrates. E este quando foi constitucionalmente chamado pelo Presidente da República aceitou formar Governo para, como disse no seu discurso de posse, governar durante toda a legislatura.

Aconteceu assim o processo natural da democracia em Setembro em Portugal e os resultados eleitorais decorrentes exprimiram inequivocamente uma nova vontade do povo português. Dividiram-se mais os votos e passou a haver a possibilidade de se formarem várias maiorias parlamentares, sendo certo que aquela que era anteriormente representada apenas pelo partido Socialista desapareceu da nova configuração da Assembleia.

Sucede contudo que nestes meses já passados desde a tomada de posse do Governo se tem vindo a assistir a um prático desaparecimento da iniciativa governamental que traduz um compasso de espera táctico para criar problemas potenciais de ingovernabilidade ou a incapacidade de o partido do governo e o seu líder encontrarem efectivamente um rumo para a governação do país. E sabe-se por todos os indicadores económicos e sociais sucessivamente conhecidos que essa mesma governação não vai ser nada fácil.

Entretanto, o Governo e o partido que o apoia perderam algumas votações no Parlamento em torno de questões e diplomas que também faziam parte das promessas eleitorais dos vários partidos da oposição. E tem acontecido, face à falta de iniciativa política do Governo e do partido que o apoia, formarem-se maiorias ocasionais de todas as oposições para aprovarem medidas diferentes das opções do Governo ou reprovarem aquilo que eram as propostas do Governo e do seu apoio político parlamentar.

Ou seja, na casa suprema da democracia, fazendo uso das suas prerrogativas legítimas, os representantes do povo eleitos pelas diversas oposições aprovaram medidas políticas alternativas às que o Governo e o partido socialista defendiam. Por conseguinte, dois terços dos deputados do Parlamento legitimamente eleito votaram propostas diversas das do Governo e do Partido Socialista.

A democracia funcionou agora não para dar coro, como sempre aconteceu nos últimos quatro anos e meio, às propostas do partido socialista e do seu Governo, mas antes para afirmar propostas políticas diferentes dessas.

E que fez então o chefe do Governo e o partido do Engenheiro Sócrates? Apresentaram propostas políticas no Parlamento, o Engenheiro começou a governar finalmente, definiu as grandes orientações da linha política do Governo? Não, nada disso, o chefe do Governo começou imediatamente a clamar aos quatro ventos contra toda a oposição, a dizer que não conseguia governar com orçamentos (imagine-se) alternativos ao seu (que não apresentou ainda), a lutar por retirar legitimidade a uma expressão lídima da democracia livremente expressa no Parlamento. E diga-se aqui que a Assembleia da República constitucionalmente não é a chancela do Governo mas tão só o seu principal escrutinador e controlador.

Não se pode também esquecer que, no entretanto, o Governo do Senhor Engenheiro Sócrates viu aprovado no mesmo Parlamento o seu terceiro orçamento rectificativo de 2009 que elevou o défice público para mais de 8%, quando o mesmo Governo, com os mesmos Primeiro-Ministro e Ministro das Finanças afiançavam há poucos meses que ele não estaria acima dos 6%.

Mas o Senhor Engenheiro tem feito nos interlúdios mais umas cenas para o filme da sua apregoada incapacidade de governar. Ataca (ou manda atacar) por intermédio de dirigentes da sua bancada parlamentar o próprio Presidente da República que lhe deu posse e legitimidade para governar.

E isto a troco de quê? Da criação de um clima tendente à sua pretensa vitimação, a qual lhe serve de óptimo pretexto para não discutir os reais e gravíssimos problemas do país e desviar as atenções para um foguetório político em torno dos importantíssimos casamentos homossexuais e, imagine-se agora, também da regionalização.

Ora, acontece que a democracia portuguesa é, tem de ser obviamente, bem mais exigente. Exige, desde logo, honradez, nobreza de carácter, responsabilidade, exemplaridade e dignidade institucional aos magistrados políticos, e escrupuloso respeito pela representação dos interesses dos eleitos. E em nome destes princípios exige também a humildade de todos aqueles que governam, e do Primeiro-Ministro por dever inalienável, para procurarem as melhores soluções para os problemas do país.

A democracia não pode ser um jogo teatralizado de manobras, esquemas e estratagemas que alimentem o ego enorme de alguém que se mostra incapaz de aceitar as condições em que o povo determinou que seja exercido o poder da governação. E que não saiba ou não queira negociar, cooperar, colaborar com as outras representações legítimas, para encontrar as melhores ou mais eficientes soluções para os gravíssimos problemas nacionais. Ainda para mais quando alguns desses graves problemas foram iludidos e escondidos durante muito tempo pelo Ministério que agora os devia, por encargo formalmente assumido, tentar solucionar ou minimizar.

Por isso mesmo é que o Presidente da República, na sua qualidade de superior magistrado da Nação e de garante do regular funcionamento das instituições, veio lembrar que já existiram outras experiências de governos minoritários em Portugal, que existem problemas muito preocupantes à espera de serem enfrentados por vários anos, e que, quando as oposições legitimamente reprovam iniciativas do governo anteriormente promulgadas e que agora são acolhidas naturalmente pela Presidência, o Governo tem não apenas a oportunidade de tomar medidas compensatórias como ainda mais o dever de negociar e consensualizar com as oposições e os parceiros sociais as novas soluções e propostas futuras a apresentar ao Parlamento.

A democracia é muito mais do que uma simples imposição permanente das vontades das maiorias políticas de cada época. Ela tem de ser um resultado de amplas negociações dos mais amplos interesses dos representados, exprimam-se eles através da maioria política que governa ou das minorias políticas da oposição que têm também as suas respectivas legitimidades intactas. É certo que em democracia deve governar o Governo, mas este não deve nem pode governar contra a vontade da maioria dos portugueses quando esta esteja em consonância e exprima legitima e afirmativamente essa vontade e os respectivos interesses.

Por isso, Senhor Engenheiro encontre lá o rumo e o sentido da governação do país e não continue nesse caminho de mistificação e teatralização de quem não sabe o que quer fazer ou não tem vontade de encontrar as convergências com as demais forças políticas em torno das difíceis soluções para os gravíssimos problemas de Portugal.

A democracia não é nem nunca foi um projecto de poder pessoal – porque a democracia é isso sim “o governo do povo, para o povo e pelo povo”. E Portugal não apenas merece como escolheu sucessivamente viver em democracia e com liberdade para escolher o seu caminho e os seus legítimos representantes.

José Pinto Correia, Economista

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