quinta-feira, 16 de julho de 2009

Liberalismo em Portugal: uma ausência de sempre!

Os contributos teóricos de vários pensadores associados à tradição liberal do pensamento político e filosófico foram essenciais na construção das realidades políticas, económicas e sociais de vários países da esfera ocidental que apresentam maiores níveis de desenvolvimento.

Assim, pensadores que vão desde Adam Smith, Stuart Mill, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, John Kekes, Karl Popper a Isaiah Berlin foram construindo as bases da concepção liberal do pensamento político e filosófico, a qual esteve praticamente ausente de todo o século vinte português como, aliás, refere com amplo fundamento o historiador português Vasco Pulido Valente.

Em Portugal sempre nestes últimos mais de cem anos a organização da nossa vida cultural e social, e até a económica, esteve bem longe dos princípios fundamentais que norteiam as concepções liberais, das mais clássicas anglófonas até às mais contemporâneas assentes na “armadilha potencial” da denominada terceira via.

Melhor, decorrendo do dizer clarividente de Berlin quanto aos seus dois conceitos alternativos de liberdade, o Portugal de todo o século vinte optou por modelos e narrativas dogmáticas racionalistas que são características intrínsecas da concepção da denominada liberdade positiva. Nesta acepção da liberdade, uma das duas para Berlin, os homens estão ao serviço de grandes projectos, uniformizadores das vontades e opções dos indivíduos, apontados à construção de utopias que racionalizariam as esferas individuais e gerariam a coerção das vontades e objectivos plurais das diferentes pessoas. E existem sempre nestas grandiosas narrativas desta concepção, claro, os intérpretes privilegiados e superiormente esclarecidos desses desígnios de estruturação e organização da vida económica, social e cultural, quer sejam líderes, partidos, militantes ou mesmo ditadores.

Por isso mesmo, Portugal assistiu primeiro, no início do século vinte com a implantação da República, à narrativa republicana, profundamente anticlerical, maçónica e carbonária. Uma vez fracassada esta, o mesmo Portugal passou depois ao totalitarismo salazarista de cinquenta anos. E desde os anos setenta, depois de Abril de 1974 (mais de trinta anos, portanto), Portugal tem vindo a ser mobilizado em torno de uma narrativa contínua de “utopia socialista ou do caminho para o socialismo”, sempre constitucionalmente consagrada.

E o outro sentido da liberdade para Berlin – o da liberdade no sentido negativo –, que corresponde à afirmação não coagida do indivíduo, dos seus objectivos especiais e únicos, das suas capacidades, vontade e escolhas?

Esse tipo de liberdade, que é aquele que funda o verdadeiro liberalismo, que afirma a esfera individual única, que possibilita a afirmação do potencial económico livre das grandes intervenções colectivas em redor de um Estado predominante, esse sentido de organização da sociedade ficou sempre em todo aquele século vinte em Portugal submergido nas sucessivas etapas de engenharia social, mais recentemente na reengenharia socialista, no sempre imbatível e inquestionável domínio avassalador do Estado, da sua racionalidade construtiva do denominado “interesse geral” e do “caminho da superação e da solução final”. Tudo isso sempre dogmaticamente definido, construído pela supremacia absoluta e absurda da razão que tudo ilumina e esclarece, cerceando continuadamente e com intensidade o espaço de afirmação liberta de peias e constrangimentos dos indivíduos, e destes como pessoas.

Por isso, hoje, no novo século e milénio, neste mesmo Portugal, continua a procurar-se sem vislumbre significativo o espaço da “sociedade civil”, do cidadão e da cidadania, da responsabilidade individual e dos deveres em vez da afirmação superlativa e constitucionalizada dos direitos.

A extensa narrativa constitucional dos direitos na base da qual se organizou toda a vida social desde 1974 permitiu o domínio avassalador do Estado com a concomitante tendência para a noção da irresponsabilidade dos indivíduos. Os indivíduos abandonaram a afirmação categórica da sua responsabilidade individual para com as circunstâncias organizadoras da sua vivência em sociedade, logo desde o domínio escolar/educativo, até ao profissional e ao da respectiva intervenção cívica, perdendo compassivamente o seu efectivo grau de autonomização relativamente à intervenção assistencial e avassaladora do Estado. Esta dependência flagrante dos indivíduos em relação à intervenção do Estado tem matriz constitucional e cautela jurídico-legal mais do que demonstrada e constitui o fundamental do cimento sociocultural e político que estrutura a Nação durante todo o século vinte.

O Estado, com o seu poder imenso e a sua pretensa eficácia, comanda, intervém, gere, regula, cobra, exige e provém aos desfavorecidos numa moda assistencialista que sobrevive da ditadura do “Estado Novo”. E este Estado está, diz a narrativa político-cultural prevalecente, ao serviço de um “esplendor de justiça social, de igualdade, de solidariedade”.

Onde e como ficam os indivíduos e a sua liberdade negativa nesta narrativa dogmática racionalista, de criação de uma “utopia de perfeição” e de que apenas há um determinado sentido na história humana?

Ficaram, ficam e ficarão submetidos à coerção, às contingências impostas, às vontades alheias, limitados na sua capacidade de afirmarem as suas escolhas individuais, de serem eminentemente livres no sentido negativo da liberdade que lhe atribuía Berlin. Por isso mesmo, a comunidade e o seu espírito é frágil, a sociedade civil inexpressiva, o valor individual desrespeitado, a responsabilidade individual denegrida e a pessoa humana e a respectiva esfera de protecção jurídica e valorativa depreciada.

O liberalismo, a concepção negativa de liberdade que valoriza o indivíduo e as suas capacidades e vontade específica, e o valor inestimável e influente destas ideias é francamente minoritário em Portugal. Por isso mesmo se desvalorizam em Portugal o rigor, a exigência, o mérito, a responsabilidade, a autonomia e o sucesso individuais. E a organização económica, social, política e cultural, que resulta da comunhão de projectos individuais, grupais e organizacionais, reflecte essas desvalorizações permanentes.

Prevalecem hoje em Portugal, como sempre prevaleceram em todo o século vinte, por isso, as visões colectivas das “grandes obras e desígnios”, de que o Estado é o máximo intérprete e centro de poder – ainda que tomado por “intérpretes interessados” –, e os sempre alardeados e nunca definidos “interesse e vontade geral” expressos habitualmente no denominado, mas também nunca devidamente justificado, “interesse público”.

Quem acompanha as discussões políticas e as alternativas de projectos que se enumeram para o futuro de Portugal a partir de Outubro próximo não pode deixar de vislumbrar a reafirmação avassaladora destas perspectivas grandiosas de intervenção do Estado na vida económica, social e cultural, em desprimor da afirmação efectiva da esfera das capacidades e dos deveres individuais.

Nada de novo, portanto, mais Estado e menos indivíduo, ausência de liberalismo na nossa organização nacional!

José Pinto Correia, Mestre em Gestão do Desporto

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